O Meu Luto

de Sandra Martins

 

Aquela mansão sombria, a precisar de restauro e limpeza e que recentemente tínhamos comprado, tinha uma aura especial. Parecia simbolizar o recomeço de vida que eu precisava.

Andávamos juntos a limpar o terreno envolvente quando o ouvi gritar. 

Fui descobri-lo no fundo de um poço seco e estreito, coberto de folhagem e arbustos altos. Lá em baixo, vi o seu corpo prostrado arranhado, com a roupa rasgada e a cabeça ensanguentada. Chamei o 112, mas era tarde. Ele estava morto.

Parecia ter sido atacado por um animal, mas eu não me tinha apercebido de nada, nem ouvido qualquer som para lá do grito. As buscas também não encontraram nada, nenhum vestígio de qualquer animal nas redondezas. 

Voltei para o nosso apartamento no dia a seguir ao funeral.

O tempo passava, e eu continuava a não conseguir entender nem esquecer o que se acontecera. Não conseguia dormir, não me conseguia concentrar. Diziam os especialistas que cada pessoa lida com a perda de maneira diferente. 

Entretanto, notei que um pelo cinzento e rijo começava a nascer sobre a minha pele. Diziam os especialistas que era o corpo a reagir à dor. 

Numa noite, acordei encharcada em suor. Levantei-me e, ao passar pelo espelho, vi-me totalmente coberta de uma pelagem cinzenta, áspera e espessa. Havia duas presas compridas a saírem-me da boca.

Nas minhas mãos húmidas, cobertas de sangue, senti o cheiro dele.


SOBRE A AUTORA

Sandra Martins

Sandra Martins nasceu e vive em Lisboa. Estudou Gestão e Estatística. Escrevia ocasionalmente com o objetivo de informar.

A pandemia e o confinamento tornaram a ocasião cada vez mais frequente e, depois de alguns cursos na Escrever Escrever, começou a fase de exploração, para criar algo mais interessante.
O desconforto e as incertezas que marcaram os últimos anos trouxeram a público algumas experiências pouco racionalizadas e potencializaram a escrita de terror.