O Meu Nome É Sílvia

de Raquel Fontão

 

Traz na mão um lenço sujo. Linho seco e borrado do pó do deserto. Atira-o sem desviar o olhar e mostra aquele sorriso amarelo que lhe enruga a face.

Estática, de olhos sem propósito, vislumbro o seu voltar com brusquidão, o fechar da porta pesada de madeira. Estou sozinha, de novo.

Observo o lenço. Talvez deva enxaguar as lágrimas que teimam em lavrar-me o rosto. Porém, mal lhe toco. Olho em volta, em busca de algum objeto que me dê esperança ou que me abra uma saída.

Nada.

Só as partículas do pó, a dançar no fio da luz que atravessa a pequena e única janela.

Em tudo o resto, uma mancha colossal de branco, pontuada em cores por uma velha cadeira de palha desbotada e um colchão revestido a sujidade. E aquela porta. Para lá daquele pedaço de madeira escura, uma outra dimensão, desconhecida.

Sinto os pulsos doridos, a cabeça a latejar num pulsar forte e persistente. Desvio o olhar para os meus pés descalços. Não me incomoda que estejam imundos. De todo. Mas irritam-me aquelas pulseiras em carne viva que me adornam os tornozelos. São desconfortantes. O meu vestido, outrora preto, está colado ao corpo pelo suor. O calor é insuportável, e o meu cabelo comprido escorre seboso, cheio da areia do chão.

O meu nome é Sílvia. E acordei neste quarto sem luz.

***

É madrugada. A Lua caminha pelas grades da janela, e os meus olhos estão abertos. Lágrimas imaginárias formam sulcos de poeira junto às pálpebras extintas. Não me importo. A sua ausência, agora, em nada me incomoda.

O tempo passa. O meu olhar segue o luar que atravessa o postigo. Mas a monotonia é interrompida quando a porta pesada se abre. Aquelas pernas surradas, cobertas por uma bata deslavada, entram e param à minha frente. Se não desvio o olhar, não é por falta de vontade.

Alguns minutos passam.

Eu, elas — as pernas.

O único som produzido é o roçagar de uma jarra de água na velha cadeira. Ouço também um suspiro. Ou será um pouco de água que transborda? Depois, as pernas voltam-se. E encerram a porta do mundo.

***

Agora que o sol entra no meu quarto, vejo um pedaço de pão mal cortado junto à jarra.

Talvez mais tarde. 

A verdade é que o meu pensamento se dilata, perdido no meu interior. Nem me apercebo quando me sento e pego no pão, brincando com ele, indiferente. Tento trincá-lo, mas é demasiado duro. Sugo-o com sofreguidão, sem pensar muito no que faço.

Já vos disse que me chamo Sílvia?

Tenho de o recordar todos os dias, caso não me lembre de como aqui vim parar. Pareço pertencer a este lugar desde sempre. Nunca existiu outro mundo, outro universo. Não sei o que se esconde por detrás daquela porta de madeira, mas sei o que há atrás daquela janela.

Areia.

Areia quente e um sol abrasador. Um calor tórrido que nos abafa. O deserto um ser vivo imenso e nefasto.

Esforço um esgar de memória, de um início. Devem ter-me drogado, apagado a mente, porque não me recordo de nada. Os pedaços da infância que ainda se mantêm incrustados na minha mente misturam-se, fazem-se passear em cenários que não lhes pertencem. Já não tenho controlo nenhum sobre eles.

Sento-me no colchão e estico as pernas cansadas. As marcas dos tornozelos ainda me doem. A minha pele está baça, seca e coberta de escamas. Levo a mão ao jarro de água e consigo saborear umas gotas.

Olho para a porta e levanto-me a custo por sentir os meus joelhos tão esfolados. Nesse momento, reparo num pequeno espelho pendurado junto à janela. Teria estado sempre ali? Curiosa, aproximo-me e vejo uma sombra desgastada do que sou. Os meus olhos escuros estão encovados com círculos vermelhos ao seu redor. O olhar morto; as madeixas pretas na testa pálida. Estou exaurida; apática.

Os minutos alongam-se e continuo a observar-me ao espelho, a estudar aquelas cavernas negras, infernos cavados na minha face. Um instante basta, contudo, para vislumbrar um brilho néscio nas minhas córneas. Consigo acordar da minha passividade e parto o espelho com o punho. Não sinto dor, e sim prazer, ao apertar na mão um dos pedaços mais afiados.

Fico ali. Estagnada junto à porta que afasta a morte da vida. Sei que é de tarde, pois as sombras avançam ao longo da parede como um organismo vivo. Tornam-se cada vez maiores e pulsantes.

Aguardo.

A porta abre-se e ela entra.

A bata.

A minha mão crispa-se numa força furiosa. Estende-se numa vontade própria àquela cara repulsiva que entra sem a minha autorização. Os seus olhos esbugalhados fitam o vazio em pânico. Reparo que não são negros, mas de um castanho quase belo, a cor tornando-se fugidia a cada segundo. Na sua boca, um grito mudo, a minha mão a cobrir aquela fenda podre de mulher.

Com uma força desconhecida, quase acumulada, atiro-a contra a porta e, com o pedaço de vidro ainda seguro, dilacero-lhe o pescoço. Rasgo numa violência que lhe faz correr um rio de sangue pela bata, que percebo agora ser de um branco imaculado. Sinto o corte irregular; o meu corpo todo em cima daquele derrame; o sangue quente a escorrer-me nas mãos. E, enquanto isso, aqueles olhos tornam-se baços, feios e sem vida.

Retiro devagar as mãos daquele corpo inerte e cheiro o líquido que as adorna. Caio no chão, já sem forças, com os braços arranhados, as pernas doridas. O odor é tão intenso que se infiltra na minha pele, e eu saboreio cada gota daquele ferro pestilento.

Procuro a chave no bolso da mulher e fecho a porta que me atormenta. Não me preocupo, por agora.

Outras virão.

Sento-me na mesma cama, suja de morte, e fito o meu deserto.

O meu nome é Sílvia. E acordei num quarto sem luz.

SOBRE A AUTORA

Raquel Fontão

Raquel Fontão nasceu em Vila Nova de Gaia, Portugal.

Entrelaçou, desde cedo, os universos da música e da escrita. Estudou saxofone na ESMAE e licenciou-se como professora do ensino básico, com variante de educação musical na ESEP.

Atualmente, trabalha como professora de música e adora escrever todos os dias, transfigurando harmonias em texto. A sua predileção pelo modo menor faz com que o género de terror seja o seu preferido, perseguindo, com gosto, os monstros que a habitam.

Vive no Porto com o seu marido, filhas e as suas duas galinhas.