O Negrume Que Te Habita

De Francisco Estevão Rei

 

Domingos Amaral tinha aversão a relações monogâmicas. Experimentara-as um par de vezes durante a adolescência, mas a exigência de constante atenção e validação por parte das namoradas levara-o a tomar uma decisão drástica: nunca mais se entregaria a uma única mulher de corpo e alma. 

Essa decisão levá-lo-ia a acumular uma bela coleção de conquistas casuais, a maioria delas entregando-se de livre e espontânea vontade ao fascínio do seu corpo e do seu carisma, composto por palavras ocas cuidadosamente montadas numa teia ardilosa e infalível.

Não sabia quando a mancha de bolor negro se teria instalado no teto. De facto, só reparara nela há meia dúzia de dias, enquanto Andreia, a vizinha do 5.º direito (cujo marido partira há horas com um camião de paletes para descarregar), cavalgava o seu ginete peniano sem apelo nem agravo. Andreia vestia um bocado mal de cara, mas era uma amazona na cama. E foi talvez por tentar olhar para outra coisa que não o nariz adunco e as pústulas de rosácea que Domingos reparou na pequena mancha de bolor negro. Se fosse religioso, poderia até confundi-la com um rosto abstrato de Jesus Cristo, mas Domingos era essencialmente prático e pragmático. Assim, no dia seguinte, adquiriu um produto antibolor, uma máscara de pintura e um escadote, e entregou-se à tediosa tarefa de tentar limpar a mancha do teto, tarefa cujo resultado lhe pareceu bem-sucedido. Finda a limpeza, subiu a persiana, abriu a janela de correr em alumínio e deixou o quarto arejar. Nessa noite, quando se deitou, esboçou um sorriso ao ver que a mancha tinha desaparecido por completo.

 

*

 

Passados alguns dias, apercebeu-se de uma nova mancha de bolor negro a instalar-se no teto, no canto oposto ao que limpara. Suspirou, vestiu-se e saiu em direção ao espaço de coworking que partilhava com meia dúzia de trabalhadores independentes. Domingos era copywriter, e já criara textos publicitários para algumas das maiores marcas do mundo, de refrigerantes a produtos halal

«Desde que me paguem, até esterco vendo», costumava dizer, sendo efetivamente bom naquilo que fazia.

No final do dia, quando regressou a casa, apercebeu-se de que a mancha estava notoriamente maior. O negrume do bolor parecia mais intenso. O odor a mofo era mais enjoativo. Colocou a máscara, muniu-se da embalagem de produto antibolor e, entre um suspiro e um soluço de frustração, subiu ao escadote para uma nova batalha, que pareceu vencer após quase uma hora de trabalho árduo de braços.

 

*

 

Dias depois, surgiram duas novas manchas, mais intensas, mais agrestes, mais rebeldes. Domingos voltou a repetir o processo anterior, tentando convencer-se, após longas pesquisas na Internet, de que a melhor solução passaria pela aquisição de um desumidificador. Fê-lo no dia seguinte, um monstro cuja capacidade era mais do dobro da exigida pelo seu pequeno quarto.

O bolor negro, porém, não claudicou. 

Contratou então uma equipa especializada para pintar o quarto com tinta biocida. 

Após alguns dias de trégua e brancura, o bolor voltou, mais agressivo do que nunca. Sem saber mais o que fazer, Domingos desistiu e começou a procurar um novo apartamento, com a consciência de que, pelo valor que podia pagar, mais fácil seria ganhar o Totoloto. Desistiu depois de visitar um par de caixas de fósforos na metrópole, cuja renda era absurdamente exagerada. O mercado imobiliário tornara-se tão inflacionado que o salário mínimo nacional não pagaria o arrendamento de uma casota de cão, quanto mais o de um apartamento. 

 

 

A infeção instalou-se de forma sub-reptícia, pela calada da noite, como compete a qualquer predador silencioso. Os sintomas começaram de forma ligeira, um tossicar de catarro expetorante, que inicialmente atribuíra ao facto de ter deixado de fumar há menos de oito meses, e um pingo persistente no nariz, que exigia múltiplas fungadelas ao longo do dia. 

Dos pulmões, o bolor negro migrou rápida e resolutamente para o cérebro, urgindo-o a procurar parceiras onde pudesse disseminar os seus esporos. E esse foi um tempo de verdadeiro regabofe, em que Domingos se entregava ao copywriting das frases de engate, amiúde com sucesso graças ao seu físico e carinha laroca de recém-licenciado, apesar de já há muito ter passado a barreira dos trinta.

Enquanto isso, o bolor continuou a espalhar-se pelo organismo de Domingos, alterando-lhe as feições. A pele tornou-se mais seca, mais áspera, adquirindo manchas escuras que se assemelhavam a hematomas. Tornou-se intolerante à luz, vendo-se obrigado a tapar as luminárias de casa com abajures de tecido opaco.

Quando a condição começou a afetar o tónus muscular, o que aconteceu rapidamente, Domingos deixou de sair para trabalhar no espaço de coworking. Passou a fazê-lo a partir da mesa da cozinha, até que a luz do dia a entrar pelas frinchas das persianas empenadas o obrigou a recuar para assentar arraiais no exíguo espaço da despensa. Habitou-se a encomendar comida para entrega ao domicílio, apesar de a mera luz do telemóvel lhe causar horríveis dores de cabeça.

 

 

Quando a polícia finalmente forçou a entrada, devido ao cheiro nauseabundo que os vizinhos denunciavam como procedente do apartamento de Domingos, encontraram os cadáveres de quatro entregadores de refeições de diferentes marcas, de uma mulher que os testes de ADN viriam posteriormente a identificar como Andreia e de dois outros vizinhos que, aparentemente, tinham tido a audácia e o azar de lhe bater à porta. 

Não encontraram, contudo, quaisquer sinais de Domingos. Apenas uma enorme massa amorfa de bolor negro, que parecia singrar e palpitar no fundo escuro da despensa.


SOBRE O AUTOR

Francisco Estevão Rei

Desde tenra idade que Francisco Estevão Rei é um adepto fervoroso do género de terror em todas as suas manifestações (criativas, artísticas e derivadas da vida real). Assim, não é de estranhar ter sido na ficção especulativa que encontrou o género que mais lhe dá prazer escrever — com particular enfoque em temas relacionados com o sobrenatural, o fantástico e o horror. Tem orgulho na sua conhecida obsessão pelos detalhes e pelo seu espírito crítico demasiado exacerbado, caraterísticas que lhe granjeiam pouca popularidade, mas uma imensa paz de espírito.


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