O Noivo

de A. M. Catarino

 

Querida correspondente,

esta é a última vez que te escrevo. Quando leres esta carta, já deverás ter tido notícias do meu triste destino.

Tenho uma derradeira confissão a fazer-te: a única coisa que queria era conhecer o rosto do homem com quem viria a casar. Foi por essa razão que saltei uma única vez a fogueira, na noite de São João, e depois me fui ver ao espelho à meia-noite.

Sei o que estás a pensar. Crescemos a ouvir dizer que isso nunca se faz. O correto é saltar três vezes a fogueira e nunca, nunca, em circunstância alguma, espreitar o espelho. Mas a velha que mora para lá da azenha, aquela que tem fama de bruxa, disse-me que, se saltasse só uma vez e me fosse ver ao espelho, iria descobrir no reflexo o rosto do meu futuro marido.

Estou tão arrependida de ter procurado a sua ajuda. Nunca lhe devia ter dado ouvidos! Estava de tal forma obcecada em conhecer as feições do meu noivo que saltei uma única vez a fogueira, e à meia-noite já estava em frente ao espelho do meu quarto. Torcia os dedos de expetativa. Compunha os cabelos desalinhados pelo baile. Afinal, não é todos os dias que ficamos a saber quem é o homem da nossa vida!

As badaladas soaram na torre da igreja. A superfície do espelho embaciara-se pela proximidade da minha respiração ansiosa. Ao passar a mão para o limpar, no entanto, uma humidade gelada entranhou-se na minha pele. Senti um calafrio a percorrer-me, ao ver que o meu reflexo desaparecera, e que o outro lado estava vazio.

O meu coração estilhaçou-se. Quereria aquilo dizer que nunca iria casar?

A moldura oval começou então a estremecer, como se alguém se aproximasse. Do lado esquerdo, surgiram o meu pai e o meu irmão, vestidos de preto. Carregavam algo nos ombros. Boquiaberta, não percebi logo que se tratava de um caixão. A segurar a parte de trás, vinham os meus primos, seguidos por um triste cortejo. A minha mãe não se sustinha de pé, carregada pelas irmãs.

E eu? Onde estaria eu?

Procurei-me. Coloquei-me em bicos de pés para espreitar melhor. Foi nesse instante que reconheci quem estava dentro do caixão. Era eu! Dei um grito e fugi a esconder-me debaixo dos lençóis.

Desde então, não voltei a abandonar o quarto. Passaram-se três dias. Nem me atrevia a levantar da cama.

Hoje, recusei acompanhar os meus pais e o meu irmão ao jantar de anos da tia Balbina. Implorei-lhes que não saíssem, mas não levaram a sério as minhas angústias. Fora assim desde que me recusara a sair do quarto, na manhã seguinte à terrível visão do meu cortejo fúnebre. Riram a bom rir quando lhes contei o sucedido. Até dançaram à frente do espelho, já regressado à usual função. Era para aprender a não consultar bruxas velhas, disseram jocosamente.

Nenhuma das minhas súplicas os convenceu a ficar em casa. Resignada, pedi apenas para que fechassem bem a porta, o que os fez soltar nova gargalhada. Fizeram-me a vontade, ainda assim: ouvi rodar três vezes o trinco da fechadura.

O que de nada me valerá.

As janelas estão embaciadas por fora. Anda alguma coisa às voltas da casa. Algo que sabe que estou cá dentro. Não tarda muito para que consiga entrar.

Enquanto escrevia a linha anterior, ouvi a primeira volta da fechadura. Vou regressar à cama e aguardar o meu fim.

Despeço-me de ti, minha querida amiga, agora que ecoa por toda a casa a segunda volta da fechadura.

Não devia ter querido saber com quem ia casar.

Não teria assim percebido que o meu pretendente era a morte.

SOBRE O AUTOR

A. M. Catarino

A. M. Catarino vive uma vida dupla: na primeira, é formador externo em vários centros de formação profissional da zona Oeste; na segunda, é autor de variadas obras literárias e fotográficas, tanto a nível individual como colaborativo.

Nesta segunda encarnação, recebeu já diversas distinções e galardões, dos quais se destaca o Prémio Internacional Books & Movies 2017 – Município de Alcobaça.

Mais informações em www.amcatarino.com.