O Padeiro
De João Porfírio
Desligo a ignição. Desce um frio ártico da serra, arremessado pelo vento típico capaz de me dilacerar o seio nasal. Cauteloso, deixo o carro numa descida, não vá o motor trair-me de manhã, como tem sido hábito nas primeiras semanas do ano. À noite, mato os meus demónios. Tenho tempo.
Coloco a chave na porta secundária e sinto logo o cheiro adocicado da farinha a toldar-me a perceção. Às apalpadelas na parede crespa, como se fosse a primeira vez, procuro o interruptor para perceber se chegou o carregamento durante o dia. Estamos a ficar sem farinha, como é que aquele animal quer fazer pão?, penso ao reproduzir na mente a figura do meu patrão. Tendo a desbaratar as pessoas quando não fazem as coisas a meu preceito.
Do lado de fora da padaria, o pastor-alemão com personalidade de caniche ladra aos carros indistintos que cruzam o asfalto seco da madrugada. É capaz de ficar naquele registo durante uns quartos de hora valentes. Nas primeiras noites, deixava-me intrigado, mas o patrão disse que era normal. Vou ao balneário para vestir a roupa de trabalho. Passo pelos troncos de madeira encamados e bolorentos, e um pensamento vago normativo sai-me da boca, como se o dissesse a uma parte de mim a precisar de um abraço ou de uma justificação:
— Foda-se, estou farto disto. Tenho de sair daqui. Hoje, já lhe deixo a carta. — Ocorrem-me muitas vezes coisas deste género, mas digo-as sempre entredentes, para que nem eu as entenda muito bem e não possa agir em conformidade na manhã seguinte. Acho que o que mais custa é entrar na padaria todas as noites, acabo por me afeiçoar ao trabalho. Ao início da manhã, sigo para casa com o sentimento de dever cumprido e de cidadão exemplar que nada deve a ninguém. O problema é sempre acordar ao início da noite e sentir que vai ser uma jornada como as outras. A falta de sol não ajuda.
Enquanto não aquece, a padaria, em pleno inverno, é fria. Costumo usar uma camisola listada de cinzento, violeta e verde. Está esbatida, mas serve bem para o serviço. A meio da noite, devo tirá-la, quando não aguentar o calor da fornalha.
Encho um bidão com água para o levar para junto da amassadeira. Se fosse verão, teria de lhe acrescentar gelo, caso contrário a massa estragar-se-ia antes sequer de poder fintar. A coisa boa deste trabalho: não passo frio no inverno.
Vou puxar as brasas da noite anterior para a frente para poder atear o fogo. O cão não para de ladrar! Os toros estão húmidos e fico com as mãos embranquecidas de bolor.
Com a ajuda de duas sacas de farinha vazias, consigo dar ao carvão de luminosidade alaranjada o combustível necessário para prometer pão às pessoas da aldeia daqui a oito horas. Vou à despensa por onde entrei e pego na última saca disponível. Os padeiros não precisam de ginásio. Nunca estive tão em forma como estou hoje. Tiro a linha de algodão que a mantém selada e despejo os 25 quilos de farinha na amassadeira. Deve dar para as encomendas.
Para me fazer companhia, ligo o velho rádio, somente capaz de se sintonizar nas estações locais. As músicas não me agradam de sobremaneira, mas os dialetos e as pronúncias familiares trazem-me o conforto que nunca encontrei nas visitas às grandes cidades. Gosto especialmente de ouvir os discos pedidos.
O pastor-alemão late com um gorgolejo temerário. Sou impelido à porta que nos separa. Encosto a cabeça ao alumínio e, entre os latidos, ouço-o a fungar e a farejar algo. Na janela ao lado da porta, vislumbro as sombras das árvores a dançarem ao ritmo do vento furibundo da montanha e parece-me ver a sombra do focinho do cão fundida na ramagem.
A amassadeira faz o seu trabalho, e o lume estala por baixo do forno velho. Já tenho o sal e o fermento pesados. O vento embate com força contra a porta de alumínio onde descanso a cabeça. Sinto um cheiro a ferro a penetrar na divisão por uma fresta no fundo da porta.
O cão esgadanha o alumínio com as patas, adivinhando que estou deste lado. Rodo a maçaneta, e o pastor-alemão apoia-se nas patas traseiras e engalfinha-se nos meus ombros, aproveitando os dois degraus de elevação. Não distingo nada de extraordinário na rua, sinto apenas o meu rosto a ser lambuzado e o cheiro férreo a sangue a invadir-me o olfato. A estação de rádio passa uma música ligeira qualquer, enquanto subo os dois degraus. Tropeço no que julgo ser uma saca de farinha.
Talvez tenham deixado o carregamento aqui. Está escuro.
O cão precipitou-se para junto do lume e deixou-me sozinho, lado a lado com o que agora vejo ser o corpo prateado do seu dono, o meu patrão. Banhado pela lua cheia, o sangue ainda quente brota da sua boca ausente de dentição como lava expulsa de um vulcão, adormecido para a eternidade.
Tremo. Temo perder o meu emprego. A minha respiração atropela-se pelos batimentos cardíacos de quem não sabe o que fazer. Não fui eu, penso. Tenho as mãos, a camisola e as calças de ganga cobertas de crude. O sangue, à noite, parece petróleo. Não fui eu, retomo o pensamento. Tomado por uma vontade emergida do fundo das entranhas, agarro no corpo maciço do meu patrão e arrasto-o para dentro do edifício. Quero ver-me livre dele, deste peso morto. Afugento o animal e abro a porta da fornalha.
Primeiro, os pés. Depois, as pernas, o tronco, o pescoço e a cabeça. O velho forno da padaria transforma-se num crematório improvisado. O cão uiva para o ar em lamento, e eu observo as chamas com o brilho obtuso de quem sabe que o pão, de manhã, terá um sabor distinto, tendo já eu regressado a casa com uma sensação renovada de dever cumprido.
SOBRE O AUTOR
João Porfírio
Nascido e criado na Beira Interior, na encosta da Serra da Estrela. Estudou Sociologia. Trabalhou na área durante algum tempo. No verão de 2022, mudou-se para a região de Aveiro. A escrita, os clássicos da literatura, a guitarra e a afeição pelos animais moldam o seu dia a dia. Trabalha para poder viver da escrita. Com um espírito proselitista, quer criar um Clube de Leitura na zona onde reside e trazer mais pessoas para esta paixão pela escrita e pela leitura — ambas necessitam de ser partilhadas para se assumirem reais.