O Pai

de Francisco Horta

 

Há anos que não via o meu pai. Anos.

Eu nem sequer andava ainda na escola quando a minha mãe pegou em mim, certo dia, e me sentou no banco de trás do Fiat. Prendeu-me o cinto de segurança, atirou com duas mochilas para o porta-bagagens e pôs-se à estrada. Disse, olhando-me pelo espelho retrovisor, com aqueles olhos vermelhos de tanto chorar:

— Mato-te se algum dia aqui voltares, Luís Filipe. Mato-te.

Tive de voltar.

Suponho que seja compreensível. Tanto tempo sem uma explicação válida para tamanha proibição, mesmo quando pedia, agarrado a ela, para convidar o pai a almoçar connosco, a passar um fim de semana. A ligar-lhe, pelo menos; a deixar-me falar com ele pelo telefone. «Nem pensar, Luís Filipe». «Nem depois de morta, Luís Filipe». Era só nestas alturas que me chamava assim, «Luís Filipe», e eu sabia que era escusado insistir.

Mas tive de voltar.

Queria vê-lo.

Queria saber se o que diziam era verdade. Porque as pessoas comentam. E comentam à nossa frente, sobretudo quando somos crianças e parece que não estamos a ouvir, mas estamos. E depois dão-nos um chocolate e nós fingimos que não estávamos atentos, mesmo quando dizem que o nosso pai deve estar embruxado, ou pior.

Cheguei de noite, por hora do jantar. Foi há precisamente um ano, no início do outono.

O meu pai não ficou surpreendido por me ver.

Nem um sorriso. Nada.

Algumas feições eram-me familiares, mas já me tinha esquecido do vitiligo, que também tenho.

Meteu-me um prato de caracóis à frente. Estavam frios, devem ter sobrado do almoço. Não perguntou se gostava, se estavam bons. Chupou uns dez enquanto eu tentava perceber como usar o palito para os puxar cá para fora.

Não perguntou como tinha conseguido ali chegar.

Não perguntou se tinha ido sozinho.

Não dissemos coisa nenhuma um ao outro.

Demorei uns minutos até conseguir travar o vómito que queria explodir pela garganta por causa daquele cheiro a caracóis cozidos.

Ia começar a falar quando o meu pai se levantou e se apressou para a rua.

Fiquei sem saber o que fazer. Ali estava, praticamente no meio do mato, envolvido pelos sons das corujas e dos sapos, dos grilos e de bichos que não saberia, nem sei, identificar. Longe de tudo aquilo que conhecia, a desafiar a minha mãe — sem dúvida que isto me traria problemas.

Embora hesitante, a passo curto, fui atrás dele.

Nem sinal do meu pai, nem de qualquer outra pessoa.

Mas havia um coaxar anormalmente alto, que vinha do ribeiro, e eu fui nessa direção.

Talvez o meu pai também tivesse ido atrás desse som, apesar de não o ter ouvido antes.

Assim que cheguei ao ribeiro, olhei para todo o lado, mas vi apenas sapos. Sapos que se atropelavam num único sentido, atraídos por esse coaxar.

Olhei de novo, em volta, e por fim, escondido no escuro atrás de um sobreiro, estava o meu pai.

Agachei-me, tentando ocultar-me na noite o melhor possível, mas fui-me levantando à medida que o meu pai avançava para a água, com o pénis na mão. A luz refletida pela Lua permitia ver aquilo que eu não queria.

Ejaculou para a água e mergulhou nela.

Forcei-me a caminhar para a zona do mergulho, mesmo que as pernas, trementes, não o quisessem. Precisava de ver de perto; precisava de ter a certeza daquilo que via.

E vi.

O meu pai a sair da água, com um conjunto de ovos de sapo envolto nas pernas e nas costas.

Sobre o Autor

Francisco Horta

Francisco Horta nasceu em Vila Franca de Xira, em 1987, e foi criado na Subserra. Sonâmbulo, acordou diversas vezes na pedreira, para lá da serra. Durante o caminho de volta a casa, ouvia sussurros que viriam a inspirar as histórias que escreve. Licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa. Tem como principais influências Richard Matheson e Samanta Schweblin. Vive em Almada, com a mulher, a filha e o filho.