O Presságio

de Matilde Loureiro

 

— Anda daí, Sofia! Deixa de ser tão medrosa! — impele-me Artur, ao saltar agilmente sobre um tronco caído. Olho-o com apreensão. Rolo os olhos. Levanto a saia com a mão esquerda enquanto aceito a sua ajuda para escalar o tronco com a direita.

— Eu não sou medrosa! Tu sabes que não devemos andar fora de casa a estas horas!

Passam alguns minutos da meia-noite. O luar mal ilumina o chão da floresta.

— Ah! Sempre com essas coisas de gente medrosa e cobarde! Tens medo dos espíritos maus, é?! — Artur troça de mim. Mas as histórias que a avó conta devem ter o seu fundo de verdade, não é? Senão, para quê advertir-nos com tanto afinco? Apesar do gozo de Artur, salto do tronco para o chão de musgo da floresta. Aterro quase sem som.

— Vês? Não aconteceu nada de mal! É só um tronco!

Artur ri-se alto e descompassadamente, enquanto lhe espeto o dedo no braço para o aborrecer. Ele limpa lágrimas de riso.

— Anda, vamos mais um pouco.

Mostro-lhe a língua, mas aceito a mão dele de novo. Caminhamos num pequeno trilho que se parece ter formado por entre as árvores densas. Observo como a floresta é linda. Artur pontapeia repetidamente uma pequena pedra arredondada.

O som de latidos, de repente, rompe o silêncio da floresta. Ambos estacamos de olhos bem abertos. Artur rapidamente se recompõe.

— Devem ser os caçadores da aldeia… Hoje, é lua cheia, dá para ver melhor a caça… Pelo menos, foi o que os ouvi dizer quando fui ter com o pai à taberna…

— Os caçadores não se iam atrever a vir à floresta de noite… — sussurro, com receio de que o que possa estar a vaguear pela floresta nos ouça.

— Ó Sofia! Eles são homens grandes e fortes, como eu estou a ficar! Não têm medo das histórias da avó! Sabes lá se ela não está já… — Artur leva um dedo à têmpora e roda-o, revirando os olhos e deitando a língua de fora.

— A avó não está tonta, Artur! — Amuo, insultada pela insinuação. — E tu és um miúdo, não és um homem!

Artur encolhe os ombros e caminha um pouco em frente. 

— E tu és uma miúda…

Ele afasta-se um pouco mais. Tento manter-me quieta, mas o medo invade-me o corpo, enviando-me um arrepio agudo pela coluna. Apresso-me para o apanhar. Antes com ele do que sozinha… 

Quando o meu pé toca no chão verde e fofo, vejo algo voar na direção dele. Algo rápido que rasga o ar com um assobio. Paro. Artur cai no chão. Uma flecha trespassa-lhe a cabeça de uma têmpora à outra — um tiro certeiro e limpo. A face ainda retém o seu sorriso trocista. 

Corre! 

Não me consigo mexer, o pânico consome qualquer ação. 

Uma figura etérea sai do emaranhado de árvores, montada num enorme cavalo. Atrás, uma matilha de cães grandes, de pelo eriçado. Observo-os primeiro, como se algum feitiço não me deixasse ver por completo o cavaleiro e a sua montada. Os animais, de focinhos ensanguentados, parecem-se com lobos, mas são maiores, mais corpulentos. Os seus olhos brilham no escuro de uma forma que os olhos não deveriam brilhar, nem mesmo os dos animais. Os seus dentes são demasiado afiados. As suas patas parecem nem sequer fazer contacto com o chão.

— Olha-me, mortal. — O cavaleiro ordena-me num tom autoritário, mas sem gritar. O tom de quem está habituado a dar ordens e não ser questionado.

Olho-o lentamente, com receio, vendo primeiro o seu cavalo. É um animal de um negro tão escuro que parece sugar toda a luz da Lua, a pouca que consegue atravessar a densa copa das árvores e chegar até ao chão de musgo. Nem os cavalos de guerra dos nossos guerreiros são tão imponentes. Apesar de se assemelhar a um cavalo, o animal tem os mesmos olhos luminosos, o mesmo focinho coberto de sangue e os mesmos dentes afilados dos cães-lobo, que agora rodeiam o corpo do meu irmão gémeo. Só depois, olho para o cavaleiro. Aparenta ser um homem, alto e grandioso como o seu cavalo. Os olhos dele também brilham. As suas feições lívidas e angulares terminam em orelhas pontiagudas, com o cabelo de um negro tão profundo que dá também a ideia de sugar toda a luz e, com ela, todo o ar. Se fosse humano, coisa que não é, não teria mais do que meia dúzia de anos a mais do que eu ou Artur.

Tenho medo, apesar da sua aparência feérica. O homem consegue provavelmente saboreá-lo no ar, pois lambe os lábios e sorri, exibindo uma fileira de dentes aguçados.

— Vai. Desaparece. — Abana uma mão pálida, perfeita e desdenhosa no ar. 

Não consigo obedecer, o terror congela-me. As lágrimas fluem silenciosamente. O homem avança até ao corpo de Artur, estala os dedos, e fá-lo aparecer tombado, com partes dos braços já mordidas, sobre o dorso do cavalo. Tão rapidamente como apareceu, o ser desaparece, levando consigo o meu irmão. 

Volto para casa, relutante, ainda em lágrimas. O presságio dita que, na melhor das hipóteses, irei morrer no espaço de um ano. Na pior, a guerra ou a fome irá abater-se sobre todos nós.

SOBRE A AUTORA

Matilde Loureiro

Nascida no dia que iniciava um novo ano para os celtas, desde 1999 que completa invernos no nosso planeta. Ávida leitora desde que se lembra, seria apenas uma questão de tempo até as palavras naturalmente fluírem para o papel. Eterna curiosa, é autodidata nos mais diversos assuntos e procura sempre conhecer algo mais acerca de um outro.
Através da sua escrita, viaja no tempo, no espaço e no mundo, chegando a ser tão fingidora como o Poeta de Pessoa. Almeja a que os seus leitores viajem consigo e sejam tão «poetas fingidores» como ela o é.