O que a Terra Não Comeu

de Goataçara

 

Para ela, a vida foi sempre madrasta. Não pôde estudar, foi governanta da casa da sua madrinha desde os 10 anos. Foram 57 anos de escravidão.

Após o desaparecimento de toda a família, ainda vai — uma vez por semana, à 6.ª feira — à casa senhorial onde sempre trabalhou, de olhos vazios e gestos mecânicos, limpar um pó que persiste, mesmo com as janelas fechadas. Um pó tão negro quanto as almas de quem ali habitou.

Certifica-se sempre de que o cendrário está bem fechado. Ainda se recorda do bebé indesejado pela patroa que aí foi fechado a chorar, e que, com as suas brincadeiras, tem espalhado as negras cinzas dos ancestrais por toda a casa.

Desde esse dia que, à meia-noite, se ouve um riso infantil, e se sente o cheiro de fraldas por mudar. Todos os dias menos à 6.ª feira, a noite do seu encarceramento.

SOBRE A AUTORA

Goataçara

Goataçara é uma leitora ávida, que só fez as pazes com o seu lado mais mórbido há poucos anos, antes fazia questão de o abafar para se normalizar. É entomóloga de profissão e tafófila de coração.