O Sacrifício

de Helena Nunes

 

«Do pó viemos e ao pó voltaremos.» E espero por Deus que tenham razão.

As chamas da lareira dançam enquanto consomem o maldito caderno. Eu permaneço sentado, no decrépito chão de madeira da casa que em tempos foi da minha mãe. Só posso sair daqui quando toda aquela insanidade for convertida em cinzas. 

O silêncio da noite é perturbado pela minha respiração ofegante e pelo leve som do papel a arder. O fogo é a minha única fonte de iluminação. A minha única companhia. E prefiro que assim o seja. Não quero que mais ninguém leia as atrocidades que ela escreveu. Pior do que isso — não quero que ninguém fique a conhecer os crimes que ela diz ter cometido. Agora sei como a ignorância é realmente uma bênção.   

«Vou morrer esta noite.» 

Estas foram as últimas palavras que a minha mãe pronunciou.

Fiz o melhor que pude para tentar apaziguá-la, dar-lhe um pouco daquela esperança de que tudo iria melhorar. Mas de pouco serviu. Depois daquela última frase, resignou-se ao silêncio. Tinha-me mostrado o caderno um pouco antes, e insistido para que eu o lesse após o seu óbito. Eu protestei. Disse-lhe que ainda faltava muito para que isso acontecesse. Foi aí que ela me corrigiu.

É irónico que, por mais afetado que estivesse com o luto, e que conseguisse esquecer-me das coisas mais básicas como comer ou tomar banho, nunca consegui apagar da minha mente aquele caderno. Todas as noites, ele assombrava-me os sonhos. Algumas semanas após o enterro, finalmente cedi e fiz aquilo que a minha mãe pediu. 

Ela sempre fora uma mulher peculiar, mas nunca a tive como louca. Profundamente devota, sim, embora nunca tenha posto os pés na igreja. Todas as noites, conseguia ouvi-la a murmurar rezas. Apesar de as palavras serem imperceptíveis, a devoção estava lá. 

Aos treze anos, tive o meu primeiro amor, Celeste, de sorriso doce e cabelos longos e claros. Queria estar sempre com ela, por isso, quando a família dela me convidou a ir à missa de domingo, fiquei imensamente feliz. Nunca pensei que a minha mãe se pudesse opor a isso. Lembro-me bem de quando lhe disse que queria começar a frequentar a igreja. Ela riu-se com uma gargalhada que parecia não ter fim. Um arrepio percorreu-me a espinha, senti-o no fundo dos meus ossos. E depois parou, de repente. Quando voltou a olhar-me nos olhos, qualquer vestígio do sorriso tinha desaparecido por completo, e de forma seca e monótona disse-me que não. Lembro-me vividamente de como fiquei assustado. Depois dessa conversa, nunca mais voltei a tocar em nenhum assunto que envolvesse religião. 

Depois de ler o que li, entendi o porquê da sua reação. Segundo o caderno, a cada ano bissexto, a minha mãe fazia o seu sacrifício ao demónio sem nome. Pelo menos, era assim que o chamava. Tinha escrito que a cara da vítima lhe aparecia em sonhos, e que tinha de ser morta na próxima lua nova.

A forma como as matava era sempre a mesmadegolava-as. As descrições gráficas e detalhadas de cada crime deram-me a volta ao estômago. O que me fez expulsar o seu conteúdo, no entanto, foi ler o que ela fazia com o sangue — que bebia um pouco e levava outro tanto para casa, para o colocar no arroz de cabidela, aquele que sempre me obrigara a comer até ao fim. 

Argumentara que tinha de fazer os sacrifícios para garantir a proteção da nossa família, referindo que o sinistro ritual permanecia na família desde o tempo do meu tataravô. 

«É cruel, e macabro, mas como pode ser loucura se funciona? Quando na aldeia se propagou a doença da língua azul, somente o rebanho do teu avô permaneceu intocado. Quando a carrinha da escola se despenhou, morreram oito crianças. Só tu e o condutor sobreviveram. Ele ficou cego do olho direito, tu tiveste apenas um braço partido.» 

Como qualquer doido conspiratório, agarrava-se às evidências que corroboravam a sua teoria e descartava tudo o resto que a punha em causa. Confundia sorte e coincidência com o sobrenatural. Recusei-me a ler os outros exemplos.

 Ainda sou atormentado pela última frase daquele caderno. «Por mais que custe, tens de continuar a tradição. Se o sacrifício não for executado, serás tu o sacrificado.» 

O caderno, entretanto, ardeu por completo. Este assunto está enterrado. Sem pensar, atiro o balde de água sobre as chamas, eliminando a minha única fonte de luminosidade. 

Levanto-me na completa escuridão, com o som do meu fôlego. Lá fora, ouço os grilos e o vento a soprar nas árvores. Agarro-me às paredes e começo a caminhar lentamente para não tropeçar. O meu carro está estacionado mesmo à entrada. Assim que sair daqui, tenciono nunca mais voltar. Entre o som da minha respiração e o som da noite, ouço um sussurro que reconheceria em qualquer lado. Paro o movimento, aterrorizado. 

— Mãe? — pergunto instintivamente.

Escuto apenas o silêncio, respiro de alívio, o meu coração bate desenfreado. Continuo a caminhar agarrado à parede, agora mais rápido. Estou a escassos metros da porta. Assim que estou prestes a alcançá-la, sinto a minha mão tocar em algo… Mal tenho tempo de processar o que aconteceu quando ouço uma voz rouca junto ao meu ouvido: 

— Não.


SOBRE A AUTORA

Helena Nunes

Nascida no ano de 1997, na região Autónoma da Madeira. Foi na pérola do Atlântico onde cresceu. No ano de 2016, iniciou a sua licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema, especializando-se na escrita de argumento. Quando não está a praticar o ofício da escrita, busca inspiração em grandes nomes da literatura como Ronald Dahl, Edgar Allan Poe e Stephen King.


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