O Tarefeiro

De A. F. Viegas

 

O cigarro queimava na mão trémula, lento e esquecido, enquanto a chuva caía miúda. Com um pé após o outro, no movimento automático que me conduzia todos os dias, havia partido para um outro lugar. Pensava nos quasis de mim, nesses resquícios do que outrora me havia embalado e feito feliz. Pensava nas almas que perdi e nos sonhos que pairavam sobre mim como abutres velhos e cansados — abutres que, na verdade, só me comeriam os ossos, porque a carne já nem a havia. Pensava em tudo. Pensava em nada. No fundo, pensava em ti.

Virei na Rua do Pranto e encontrei a tua sombra, simultaneamente petrificada, deambulante e fugaz como sempre aparecias nas minhas lembranças. Era difícil dizer quando te tinhas tornado nessa aparição noturna de cabelos negros feitos de vento. Por vezes, num raro relâmpago de sossego, entre pequenas e grandes tarefas, vislumbro um sorriso longínquo e sei que é teu. Não sei como o sei, apenas sei. Tal como sei que o cheiro pútrido que agora me invade os sentidos e me interrompe o devaneio romântico é cadavérico, decomposto. 

Sei que este pertence a um outro lugar, outrora nosso também, onde a carne é cortada a gosto e as entranhas são deixadas na paisagem, ao relento, como sementes pestilentas. No fino rasgo do véu, vi o peito dilacerado onde o coração ainda batia, leve e cansado. Os pulmões enchiam e esvaziavam devagar. Uma espada, sem discrição, trespassou-lhe o crânio e eu desviei o olhar. O guerreiro, meu conhecido, encarou-me e acenou com o sorriso manchado de vermelho. Parecia satisfeito. 

Pousei o cigarro no que me restava do maxilar e acenei de volta. Suspirei. No final, alguém teria de libertar aqueles destroços citadinos do caos imposto pelas armas. Hoje, contudo, a minha missão era outra. 

Segui caminho pela Calçada dos Ossos, com os pés um pouco mais apressados, na esperança de que nada me interrompesse a jornada. A subida era íngreme, morosa e esburacada, mas o obstáculo mais cáustico eram os espectros da vizinhança. O bairro estendia-se por toda a colina, num geométrico cinzento e delapidado, onde o silêncio e o descanso eternos deveriam reinar. Deveriam. Do canto do olho, vi que a padeira cochichava com a costureira — amigas e repórteres inseparáveis. Fileiras acima, duas sombras femininas trocavam juras de amor entre risinhos abafados e beijos castos. Segundo constava num relato perdido da décima fileira, o seu amor havia rompido uma qualquer lei divina, de qualquer um dos muitos deuses que há por aqui. Acenaram-me, como sempre, com um largo sorriso. Repousei o cigarro no maxilar e, com a mão livre, devolvi o aceno amigável. Poucas fileiras acima, encontrei o serralheiro e o seu aprendiz, que, além de decapitados, eram também irremediavelmente atrevidos.

— Ora, se não é o tarefeiro!

— Onde? Não o vejo.

— Ali vai ele, de cigarro na mão.

— Que belo! Ah, as coisas que não lhe fazia naquele fémur-

— Cala-te! Aquilo é só ossos, rapaz! Toma juízo!

No topo da colina, o burburinho das almas tornara-se distante, abafado pelo rodopio no Bairro das Vontades. Caminhei ao resguardo dos néones, evitando os pequenos ajuntamentos que se formavam pelas ruas fora. Ao longe, reparei que letreiros piscavam desregulados e soube que regressaria em breve, de escadote na mão e ferramentas à cintura. 

Desviei-me por uma ruela escondida, na certeza ingénua de que ninguém me encontraria por ali. Fugia ao desassossego que, naquele bairro, era sempre imprevisível, perverso, carregado de intenções múltiplas e fins incertos. No escuro, percebi as silhuetas das ninfas da noite, a arrastarem-se confiantes, decididas e perdidas em gargalhadas. Os corpos humanoides balançavam levemente a descoberto com cada passo, sem pudor na sua nudez. Senti-as ecoarem mais perto, numa sedução inescapável que me possuía do fémur à ponta das costelas. Em qualquer outro dia, como já ditava a sua natureza, ter-me-iam tentado levar ao lugar do escapismo eterno. Hoje, colocaram apenas os braços à minha volta, num abraço cuidadoso e companheiro. Sabiam para onde ia, e isso deixava-as satisfeitas.

Na última rua, avistei a casa isolada que era o meu destino, decrépita e abandonada. Subi as escadas com o passo ansioso, dois degraus à vez. Parei em frente à porta, respirei fundo e virei a maçaneta velha. As dobradiças rangeram. A madeira do chão acompanhou-as num lamento semelhante. Da escuridão, surgiu um suspiro; depois, um gemido baixo e rouco — desfrutavas da solidão enquanto esperavas por mim. 

Seguiu-se um sussurro, sereno e íntimo: 

— Vem. 

Em passos lentos, ligeiramente tremidos, segui pela penumbra até ao quarto. Na cama vazia, senti uma leve aragem percorrer-me o torso, suave, quase impercetível. Estremeceram-se-me os ossos num arrepio repleto de antecipação. Os teus olhos negros encontraram o vazio onde os meus haviam estado, trespassando-me como navalhas de desejo. A tua figura era tão docemente fantasmagórica que as minhas mãos se perdiam no vento gelado que te formava. Transbordavas luxúria. Foi então que o espectro do teu corpo flutuou sobre o meu, fundido com os lençóis brancos numa assombração carnal e silenciosa. Entreguei o esqueleto ao nada e, num gesto possessivo, fincaste as garras e possuíste o que de mim restava. Os teus olhos brilharam como a Lua, deleitados com o êxtase, enquanto te materializavas nas minhas mãos: ora um anjo, ora medo, a tua presença abraçava-me num beijo frio e transparente, que culminava no nosso ápice.

Reacendi o cigarro, junto à janela do quarto. Ficaste a tecer com os finos dedos os retalhos do que te contava: tarefas perdidas no tempo que em nada te interessavam, mas que registavas com todo o cuidado. Foi nesse desinteresse interessado que a tua voz soou mais lenta e suplicante: 

— Fica comigo. 

Procuraste a cavidade do meu olhar e, quando a encontraste, nada mais disseste. Brincaste com as pontas dos cabelos, de olhos presos na cidade. Não conseguias ver o rio, nem o castelo, mas isso pouco te importava. Só me querias ver a mim. Sempre ali. Sempre contigo. Mas estes, enfim, eram os ossos do ofício…


SOBRE O AUTOR

A. F. Viegas

Quando não está a dissertar sobre zombies digitais ou a celebrar velhos vampiros, A. F. Viegas despe-se da função de investigador, pendura a batina e dedica-se a ressuscitar os mortos noutro papel — no de escritor, onde procura dar uma segunda vida às sombras da sua imaginação.