O Turno da Noite

de João Ventura

 

Fazia o turno da noite no laboratório de análises clínicas.

De cada amostra de sangue recolhida, antes de iniciar a análise, tirava sempre uma pequena porção, que ia parar ao frasco que transportava no bolso da bata.

Era sempre cuidadoso com a hora de saída, antes do nascer do sol. E eram apenas dez minutos a pé até ao apartamento onde vivia. Dentro de casa, abria o frigorífico, onde colocava o frasco que trazia, devidamente etiquetado, e pegava no que tinha data mais antiga, bebendo-o, deliciado. Ia deitar-se e dormia um sono sem interrupção até ao anoitecer, quando saía para entrar ao trabalho.

Nada fazia supor que aquele dia de Outubro fosse diferente dos outros. Quando terminou o turno, saiu e fechou a porta. Foi então que um raio de sol, passando acima do edifício em frente, o atingiu. Enquanto a pele se lhe tornava cinzenta e quebradiça, e se sentia a perder as forças, teve um último pensamento: «Esqueci-me da mudança da hora!».

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

João Ventura

Gosta de escrever microcontos, mas às vezes saem-lhe estórias um pouco maiores… O que tem escrito está na Web e em algumas antologias…
O seu terreno preferido é a área do fantástico, mas não se preocupa muito com rótulos.
É um crente na Fantástica Trindade: Borges, Cortázar e Calvino.
Na Editorial Divergência, publicou em 2018 a coletânea de contos Tudo Isto Existe.
Tem um blogue, Das palavras o espaço (http://fromwords.blogspot.com), onde pode ser lido parte do que tem escrito ao longo dos anos.

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