O Último a Chegar

de Nika Oduarg

 

A batida na porta quebra o silêncio e anima o grupo mais próximo. António apressa-se a abri-la. Um novo desconhecido entra e alguns convivas cumprimentam-no.

— Olá, eu sou o Marcus — diz um dos homens, apresentando-se e estendendo a mão ao recém-chegado.

— Victor — responde o homem, retribuindo o cumprimento.

— Eu sou a Flora.

— António — acena outro membro do grupo.

— Seguro da decisão? — questiona Marcus, amavelmente. O homem anui com a cabeça, e o grupo junto à porta sorri.

— Podemos mudar de ideias, o cronómetro ainda nos dá oito minutos, mas eu, pessoalmente, não volto atrás — esclarece António.

— Sim, eu também não — sublinha Marcus, que se vira depois para o desconhecido. — Porque é que decidiste vir? Ou é muito mau perguntar?

— Foi… desenvolvimento pessoal… E vocês?

— Eu vim porque já estou farto de tudo — explica Marcus. — Alcoolismo, drogas, jogo… Estou cansado. — Os restantes olham-no com respeito, fazendo com as cabeças movimentos de aprovação e compreensão.

— Pode parecer estranho, mas eu vim por que não queria estar sozinha neste momento — afirma Flora, tímida. — Pensei que também podia haver gente a precisar de companhia…

Os restantes concordam, em admiração.

— É uma missão de filantropia — declara António, sentindo-se acolhido. — Eu vim para me juntar à minha mulher.

Todos mostram o devido respeito e compreensão. Marcus, com um sorriso, aponta ainda a Victor:

— Temos também aquele grupo, que veio para se juntar ao seu líder.

— Ou aqueles pais, com a urna do filho… — acrescenta Flora, em voz mais baixa, dirigindo o olhar para um casal sentado no chão, a poucos metros.

— E por falar em urna, que objecto é que trouxeram para o memorial? O teu é óbvio — interrompe António enquanto olha para Victor, e prossegue mostrando o seu item ao grupo. — Eu trouxe uma foto do meu casamento.

— Eu não trouxe nada, devo ser o único que vim de mãos a abanar… Não quero memorial nenhum… — esclarece Marcus.

— Eu trouxe esta mala, cheia dos meus álbuns e diários, de uma altura que me sentia perdida e sem voz… — diz Flora, emocionada.

— E tu? Isso tem algum sentido especial? — pergunta Marcus a Victor.

— Não, não tem nenhum significado, foi o meu guia espiritual que me disse para a trazer. Foi só a ele que disse que vinha. A ele e ao meu psiquiatra.

O grupo fica visivelmente surpreendido.

— E não te tentaram demover? Normalmente, não aceitam bem a nossa decisão. Eu, por exemplo, não contei a ninguém — responde Marcus.

— Sim, comigo, foi difícil. A minha filha não aceitou. Ela ainda acha que eu vou mudar de ideias antes de a contagem chegar ao fim… — partilha António.

— Comigo foi interessante — acaba Flora por dizer também. — Quando lhes disse, a minha família ficou toda em silêncio. Estava já preparada para ter de os convencer ou ir contra eles. Mas, depois de muitas perguntas e muito choro, perceberam que era a minha vida. E aceitaram.

Todos acenam, concordando com Flora.

— Mas afinal o que é que o teu guia e o teu psiquiatra disseram? — pergunta Marcus.

— Os dois aconselharam-me a vir. O psiquiatra disse que, aqui, a minha atitude não causa danos a ninguém…

— Sim, é a tua escolha, a tua liberdade — reforça António, olhando depois para o relógio. — Faltam só quatro minutos. Parece que ninguém vai carregar no botão de desistência.

— Parece que não. Se eu desistisse, só ia querer conhecer o teu guia espiritual e o teu psiquiatra. Não há muitas pessoas com a visão deles — diz Marcus.

— O psiquiatra não veio, mas o guia entrou comigo — esclarece Victor.

Os restantes membros do grupo olham-se com estranheza, mas não há tempo para muito mais. Antes que a câmara de gás seja ligada e todos partam felizes, numa eutanásia livre, para o destino que escolheram, Victor ergue a catana e fá-la descer sobre os ocupantes, que, entre gritos, vão cobrindo a divisão com um cocktail de sangue e carne retalhada.

Faltam 50 segundos para o gás ser ligado. Victor toca no botão amarelo, abandonando o espaço, dirigindo-se à próxima câmara.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Nika Oduarg

Terráquea de mente curiosa e inquieta, nascida há 2.0869565217319E-7 anos galácticos em 38,660 625, -9,075 508, exportada para onde a alma lhe voa, apaixonou-se por 38,708 6813, -9,453 8802, onde reside há mais de metade da sua existência. Filha, amiga, esposa, mãe de dois seres maravilhosos que lhe embalam o coração. Sonhadora, que adora perder-se nos seus pensamentos e que não consegue viver feliz, sem projetos onde possa dar asas à sua criatividade, privilegia os momentos de quietude e de tranquilidade. Adora aprender sobre diversos temas, e não dispensa como lazer a música e o cinema. Gosta de animais, de pessoas, de factos estranhos e de escrever.