O Último Acorde

de Álvaro Oliveira

 

As mãos dela agarraram a guitarra, enquanto os dedos se colocavam confortavelmente no lugar.

Dedilhou algumas notas, testando o som. O sistema de aparelhagens parecia estar a funcionar na perfeição. A melodia ecoava dentro e fora do velho edifício.

Inspirando fundo, recostou-se ao canto do segundo andar da loja de música.

Conteve as mãos trémulas e soltou um primeiro acorde.

Fá maior.

O som propagou-se com rapidez, ecoando pelas ruas da cidade, fazendo vibrar vidros e janelas e estremecendo o ar em volta. De seguida, parou as cordas e escutou.

Por momentos, apenas se ouviu o silêncio, trespassando as ruas aparentemente desertas. No entanto, não tardou a ouvi-los. Os gritos eram apenas o começo.

Controlou-se, inspirando e expirando. Recomeçou os acordes.

Fá maior. Deslize para o quinto traste. Mi maior.

Os gritos eram agora perfeitamente audíveis. Eles não estavam longe. Ainda que retivessem a aparência humana, era a única coisa de humano que possuíam.

As lágrimas teimavam em aparecer, mas ela não parou. Já não lhe valia de nada parar.

Fá maior. Deslize para o quinto traste. Mi maior. Ré sustenido.

O estrondo de uma janela a partir-se propagou-se pelo edifício. Os gritos que o acompanharam denunciavam a entrada, provavelmente no andar de baixo.

Não pôde fazer nada senão encolher-se ainda mais no seu canto, esperando que a porta barricada com o pesado armário fosse suficiente para os deter, pelo menos por mais algum tempo.

A porta estremeceu, fruto de um embate violento, provocado pelos seres que a perseguiam — a ela e àquele som reverberante que os levava ainda mais à loucura.

A guitarra cumpriu o objetivo, pensou, mas não podia parar. Tinha de os atrair durante mais um pouco, custasse o que custasse.

Apesar de a velha loja de música parecer implodir, com o ruído dos gritos e do rugido eletrónico da guitarra, despejou toda a sua fúria no instrumento musical. Todas as suas frustrações e tristezas. Por si. E por ela também.

O armário já não aguentava muito mais, restando-lhe apenas alguns segundos antes de a porta se abrir e uma torrente deles se despejar pela divisão, extinguindo-lhe a vida e a melodia.

As lágrimas que, por esta altura, lhe escorriam pela face não eram capazes de mascarar o medo que a inundava. Assim como não eram capazes de curar a mordedura ensanguentada que exibia na perna esquerda.

A porta cedeu, por fim, e os seres correram pela divisão, berrando tresloucadamente em direção a ela, que apenas teve tempo de soltar um derradeiro grito, manchado de lágrimas.

Fá maior. Deslize para o quinto traste. Mi m…

 

***

 

Ao longe, o som eletrónico da guitarra deixou de soar. Só aí a menina parou de correr, detendo-se para recuperar o fôlego.

Curvando-se, retirou a carta que recebeu no dia anterior. Abriu-a e leu atentamente, sem conseguir conter as lágrimas:

 

Sei que o mundo em que vivemos não é fácil. Obriga-nos a fazer escolhas difíceis, que mais tarde aprenderás a reconhecer.

A escolha que fiz não foi fácil, mas foi a única escolha. A única que os podia impedir de te alcançar, para conseguires escapar desta cidade sem salvação. A única que te daria alguma hipótese de sobrevivência. E essa é a única que importa.

Quanto a mim, já não tinha grandes hipóteses de qualquer forma, por isso não te preocupes se deixares de ouvir a nossa música, ao longe. Ela estará sempre contigo, mesmo que eu possa já não estar.

Adoro-te,

      Mãe

SOBRE O AUTOR

Álvaro Oliveira

Nascido em 2000, Álvaro Oliveira sempre teve um pé no macabro e sobrenatural. O gosto pela escrita é desperdiçado em terror, dizem os amigos. Ele diz o contrário.
Fã incondicional de Stephen King e de Nirvana, podem encontrá-lo a ter demasiadas ideias para o pouco tempo que tem disponível.

Entre ficção científica, fantasia e terror, não há nada que não devore. Tirando brócolos.