O Vale da Estranheza

De Nuno Amaral Jorge

 

Ser bonecreiro é um passatempo. É o que dizem. No entanto, tendo em conta que, depois do trabalho nos correios, ainda me enfio na oficina durante, pelo menos, três horas, parece-me que quem o diz está enganado. O que faço não é um passatempo. Na verdade, nem sou um bonecreiro. Na pior das hipóteses, sou um recuperador. 

Desde miúdo que fui abençoado com uma habilidade manual fora do comum. Conseguia arranjar ou compor qualquer bugiganga depois de a analisar durante uns minutos. Sendo criança, também adorava bonecos, fossem super-heróis e cowboys de PVC ou mesmo os modelos do Action Man, com várias roupagens militares. Estes gostos uniram-se rapidamente para criar um fascínio pela criação de bonecos e fantoches, uma obsessão que dura até hoje. 

Quando era pré-adolescente, tive um cão. Dito assim, parece algo menor, porque o Atlas (nome que lhe dei após muita indecisão) era mais do que o meu melhor amigo. Na verdade, até tornava mais fácil dispensar a companhia de outros miúdos que só queriam saber de futebol e pouco mais. Aborreciam-me, para ser sincero, e a solidão passou a ser partilhada com o Atlas, que raramente saía de perto de mim. 

O Atlas viveu uns bravos oito anos. Poucos dias depois do meu décimo oitavo aniversário, o meu amigo adormeceu perto de mim para nunca mais acordar. Não consigo sequer explicar a sensação de perda que tive, senão através da ideia de uma amputação a frio, cuja dor fantasma ainda persiste. A morte do Atlas criou um desgosto com o mundo, como se me sentisse permanentemente traído por tudo aquilo que não controlo. 

Algumas pessoas poderão achar o que fiz algo doentio, mas não estava preparado para me separar do Atlas. Com muitos protestos dos meus pais, que anuíram quando o psiquiatra lhes disse que negar o meu pedido poderia ter efeitos devastadores, o Atlas foi embalsamado. Ainda aqui está, ao meu lado, com aquele aparente sorriso. 

É certo que quem via o meu amigo perpétuo podia ter uma natural reacção de repulsa, mas geralmente acabavam por aceitar o «bibelô». A minha mãe, na altura em que o Atlas foi levado para o taxidermista, perguntava-se se aquela espécie grotesca de boneco não iria agravar a dor da perda, mas ela, tal como os outros, estava enganada. Porque eu não tinha perdido o Atlas

O trabalho do taxidermista foi de tal forma brilhante que, diariamente, dava por mim a esperar que o Atlas ladrasse. Na verdade, até ouvia os latidos. Fiquei de tal forma grato e fascinado que comecei também a estudar taxidermia.

Quando pude ter a minha casa e montar a minha mesa de trabalho, já tinha alguma proficiência no ofício, tendo começado a aplicar os meus conhecimentos em pequenos animais, mortos ou moribundos, mas sem ferimentos, que fui encontrando na rua e no campo. Ao mesmo tempo, continuei a fazer os meus bonecos, tentando aproximar uma disciplina da outra, até que deixaram de ser tão distintas — pelo menos para mim. Comecei a fazer bonecos com parcelas orgânicas, devidamente embalsamadas, mas unidas ao material têxtil e plástico com que fazia as minhas criaturas.

Anos depois, já tendo eu uma vasta experiência taxidérmica, houve uma grande comoção na minha vizinhança. Uma criança de um ano e meio, que alguém deixara sem supervisão, morreu engasgada com uma espinha. Durante uma semana, não houve outra conversa nos cafés, ou mesmo na mercearia onde eu me abastecia. Ainda hoje me pergunto o porquê da imensa e irresistível vontade que tomou conta de mim, mas o Atlas parecia perceber perfeitamente o que ocorria. Percebia e aprovava. 

A criança foi sepultada num cemitério próximo, dentro de um caixão em miniatura que parecia uma caricata tentativa de tornar a morte mais ternurenta. «Tudo o que é pequeno tem graça», diz a vox populi, mas não é verdade. Como se pode bem confirmar.

No dia seguinte às exéquias, já de noite, consegui entrar no cemitério e, lamento dizê-lo, profanei a sepultura do infante. Desenterrei o pequeno caixão e levei-o comigo. 

Ao chegar a casa, tinha tudo preparado, mas era preciso trabalhar depressa. O corpo estava ainda em bom estado, mas não se aguentaria por muito tempo. Assim, com laboriosa paciência, executei todas as tarefas. Os braços e pernas foram fáceis de separar. A cabeça não tanto. Descartei o torso e tratei de embalsamar as restantes partes do pequeno corpo, unindo-as ao peito de uma boneca de porcelana que tinha comprado numa feira. 

Ao fim de longas horas de trabalho, a criança estava completa. Os olhos eram globos de vidro, pintados com íris azuis, e as mãos e pés pareciam saídas do mais perfeito molde de plástico. 

Alguns dias depois, enviei aos pais a minha obra. Anonimamente, claro. Imaginei a alegria que sentiriam por nunca mais terem de perder a sua criança, agora eterna. Mas não foi isso que aconteceu.

Os pais fizeram queixa, e as autoridades andaram por toda a vizinhança em busca do autor de tal «horrenda e cruel brincadeira». A mãe da criança, quando soube que o «boneco» tinha braços e pernas reais, teve de ter acompanhamento psiquiátrico. Consta que nunca mais recuperou.

Não percebo porquê. 

Hoje, vou iniciar um novo projecto com um corpo adulto. Tive de o arranjar ainda vivo, desta vez, mas foi um detalhe fácil de resolver. Vai eternizar-se desta forma, por isso sei que me estaria grato, como deviam estar todos os que fui devolvendo ao longo dos anos, já devidamente imortais. Tal como o Atlas.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


 

SOBRE O AUTOR

Nuno Amaral Jorge

Nuno Amaral Jorge nasceu em Lisboa, no ano de 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance. É guionista de BD, publicou contos em várias antologias, dois romances e dois livros infantojuvenis. Destaca títulos como os romances As Três Mortes de Um Homem Banal e A Passagem, bem como o conto «Coelho Branco», publicado na antologia IN/SANIDADE, e com o qual ganhou Grande Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto – 2024.
Stephen King, Julian Barnes, Rosa Montero, Neil Gaiman e Alan Moore são algumas das suas referências.
Vive em Carnaxide com a sua companheira, os seus três gatos, e é um feroz defensor do maximalismo da liberdade de expressão, artística ou de qualquer outra tipologia.

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