Obras em Casa

de Marta Nazaré

 

Entardecia no pacato Bairro da Boa Vida. A carrinha do Serviço de Pragas e Desinfestação estacionou à frente da terceira moradia amarela, inserida no alinhamento exemplar da zona chique da cidade. À chegada ao local, Júlio, o exterminador bonacheirão, avançou com confiança para o interior da habitação, seguindo o proprietário que o inteirava do problema.

— E qual é a zona afetada, Sr. Armindo? A cave? Muito bem. Vou ter de analisar primeiro a área, mas não me parece que seja preciso encerrar a moradia. Temos um inseticida com baixo grau de toxicidade cem por cento eficaz.

— Espero que me consiga ajudar. Chamei tantos exterminadores e nenhum me conseguiu resolver o problema. Já não sei o que fazer!

Desceram os dois as escadas até à cave.

Os vários anos de experiência do exterminador não o prepararam para o soco nauseabundo e o nevoeiro impossível de varejeiras que o envolveram.

— Sr. Armindo… — tossiu. — Disse-me que tudo começou com as obras aqui em baixo, não foi?

O exterminador aproximou-se de um buraco na parede.

— Os sacanas dos bichos enfiam-se em tudo o que é lado. Vamos lá ver o que se passa — disse Júlio, ajoelhando-se e introduzindo-se de gatas na cavidade profunda de uma das paredes.

Confrontado com uma pestilência mais intensa no interior, não conseguiu conter o vómito e maldisse a sua escolha de feijoada à transmontana ao almoço. Limpava-se à manga do casaco, tentando recompor-se, quando se apercebeu de um raspar metálico, mas naquele instante a luz da lanterna incidiu sobre um uniforme familiar.

Júlio, vidrado, não conseguia desviar o olhar atónito de uma carcaça ferrugenta, húmida e mirrada, coberta de pequenos orifícios de onde espreitavam insetos larvais a banquetearem-se ávida e alegremente dos restos suculentos de outro exterminador. Na sua dança cadavérica, os vermes enamorados contorciam-se num frenesim erótico, sobrevoados por uma mancha verde e azul a zumbir de imundice.

O exterminador escorregou nos restos da feijoada ao tentar recuar, mas não conseguiu sair. Algo o impedia. E milhares de vermes, esfomeados, começaram a subir-lhe para cima e a restringir-lhe os movimentos. Tinham agora um novo banquete.

Embora no interior daquela fecundação tivesse começado a escurecer, Júlio, ao olhar para trás, ainda conseguiu ver o Sr. Armindo a assobiar, enquanto lhe bloqueava a passagem com um móvel de metal.

 

SOBRE A AUTORA

Marta Nazaré

Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.

Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.

Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o error infantojuvenil.