Os Cinco Princípios

de Maria Varanda

 

— Só por hoje, sou calma. Confio. Sou grata. Trabalho honestamente e sou bondosa. — A voz saiu entre respirações profundas, quase impercetível na torrente de ar movida.

A água da torneira borbulhava em si mesma, trepando pelos limites da banheira, o seu vapor visível no ar e por toda a casa de banho, tornando-se quase corpóreo. Com ele, subia o cheiro a óleos essenciais de lavanda.

As luzes do teto estavam apagadas e a Lua, tão redonda quanto o rosto de uma menina anémica e gorda, enviava a sua luz doentia pela janela. A divisão parecia corrompida, os seus tons brancos tornados cinzentos pela escuridão.

Abriu uma gaveta e tirou velas e os fósforos. Espalhou as velas pela casa de banho e acendeu-as. O amarelo das pequenas chamas era quase engolido pelo vapor que enchera o espaço.

— Só por hoje — repetiu, exalando o ar pela boca e empurrando a forma fantasmagórica que a tentava engolir e dissolvê-la em si.

— Sou calma.

Pronunciou as palavras como se, com elas, eliminasse toda a raiva do peito e barriga. Abriu o fecho lateral do vestido preto e abandonou-o no azulejo frio. Com ele, deixou também a roupa interior. Olhou para o molho negro e encharcado que ficara no chão e pensou que, depois do banho, deveria deitar tudo para o lixo.

— Confio.

Juntou as mãos uma à outra, em oração, e elevou-as até ao peito, posicionando-as em gassho.

— Sou grata.

Entrou na banheira com a torneira ainda aberta, o tumulto de água massajando-lhe as pernas.

— Trabalho honestamente. E sou bondosa.

Os músculos cederam perante a força inigualável da água quente, como se fosse gelo. Havia sítios ao longo do corpo que ainda lhe doíam e que iriam, sem sombra de dúvida, colorir-se primeiro de roxo e depois, com o tempo, dar lugar ao amarelo. Eram tudo zonas que conseguia esconder, mas teria de arranjar uma justificação para os pequenos cortes nas mãos e rosto. Talvez um gato… Por agora, aquele momento era seu e apreciá-lo-ia enquanto durasse, muito para lá do tempo que a água demoraria a lavar todo o sangue que lhe pintava a pele que o vestido deixara exposta.

Olhou para a roupa. Não era percetível no preto, mas estava tudo tão saturado que o vermelho derramava como tinta no azulejo branco, o peso do líquido e do tecido pressionando a roupa contra o pavimento, criando a ilusão de que estava a derreter. Levou os dedos da mão esquerda à cara e depois à boca, lambendo o pouco que ainda não secara no rosto.

Sorriu. Tinha de treinar melhor esta coisa de ser calma, mas a parte da gratidão já dominava. Era grata por todos os momentos do dia, mas especialmente pelos da noite.

SOBRE A AUTORA

Maria Varanda

Nasceu no ano de 1994, sob uma lua minguante, em Sintra, e cresceu a ouvir histórias da aldeia, sobre o papão e ossos escondidos na cave — ganhou-lhe gosto. Está sempre à procura de inspiração na vida real para mais uma história, mas na falta de ideias basta tirar o tabuleiro de ouija, acender umas velas e esperar. Depois, é só passar a mensagem para o papel. Procura-se quem queira ouvir.

A mensagem parece ter chegado aos ouvidos de alguns, com a atribuição do Prémio Adamastor de Ficção Fantástica ao seu conto, «Anfitrite».