Parasita

de Nuno Gonçalves

Agora, diz que tem pulgas. Pulgas! Na minha casa! Em lençóis que eu lavei!

Há quanto tempo? Sei lá! Mas lavei-os! Garanto que os lavei!

Pulgas! Para além dos piolhos.

Anda com aquele cabelo de rato infestado de vermes. Até me dá náuseas. Vómitos, até! Vomitava agora mesmo se tivesse comido alguma coisa. Mas como é que posso ter apetite depois de ela se ter vindo queixar, com aquele gemido insolente que ela usa como voz, de se ter vindo queixar a mim — a mim que lhe dou tudo, que não lhe falto com nada — que tinha pulgas na cama. Pulgas!

Queria mostrar-me as pernas comidas pelos bichos. Como é que podia olhar? Já olhar para ela me custa, quanto mais para feridas infetas e nauseabundas.

Se tem pulgas, que as mate! Que lave a roupa da cama! Que a queime! E que durma no chão! Não foi já o que lhe disse para fazer com o cabelo? Queima-o, filha! Achas que vais ficar mais repelente do que já és? Se já ninguém consegue olhar para ti, que mal achas que vai fazer? Queima-o e vais ver como os piolhos desaparecem.

E ela ouviu-me? Queimou o cabelo?

Pois claro que não. Insolente. Ainda nem menstruou e já acha que-

Só conhece luxo, preguiça e boa vida e pensa que pode aparecer, gemer, queixar-se e que eu-

Ah, mas em minha casa, em minha casa, mando eu.

Que fuja para o paizinho se quiser, e ele que lhe cate a bicheza. Sim, ele que cate um verme de cada vez até sangrar das unhas, e que os parasitas lhe comam os dedos até ao sabugo.

Que é isto agora? Ligou o chuveiro? A uma quarta-feira? Mas ela não sabe já que durante a semana-

— Desliga já isso! Desliga a água! Tu pensas que eu ando a trabalhar para tu te banhares como uma rainha?

E para quê tanta gritaria? Só porque lhe puxei o cabelo? Mas como é que havia de a arrastar para fora da banheira? Com palavras meigas?

Ai, o cabelo! Toquei-lhe no cabelo!

— Fizeste-me agarrar esta trunfa asquerosa, minha-

E agora? Sabonete? Detergente? Lixívia? Como é que tiro isto das mãos?

— E só sais do quarto quando matares essa bicharada toda! Se tens comichão, coça! E cala-te! Cala-te, que já não te posso-

Igual ao pai. Igual, igual. Cara de rato, cabelo de rato. Claro que as pulgas lhe pegam. Que os piolhos enchem a pança.

Sábado. Sábado é que é dia de banho. Que se lave como os gatos, entretanto. Ou a língua só lhe serve para me moer o juízo?

 

*

 

Sábado é já amanhã. Estes dois dias passaram sem se dar por eles. E ela tem estado sossegada. Muito sossegada.

Espreito-a, volta e meia. Dorme, quase sempre.

Sossegada. Dorme.

Há quanto tempo estará a dormir? Tenho a certeza de que ainda ontem a vi acordada. Ou teria sido no dia anterior? Comeu? Não comeu? Quando é que lhe deixei a sopa?

Abro a porta, de luvas.

Fico aliviada, pois vejo que ainda respira. O lençol mexe ao de leve.

Chamo por ela. Não me responde.

Insolente.

Arranco-lhe o lençol.

Não.

Não era a respiração que o fazia mexer-se.

Vomito sobre as larvas que se alimentam do cadáver.

 

SOBRE O AUTOR

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).