Pelo Apelo

de Laura Vasques de Sousa

 

Saí da cama devagar e avancei em bicos de pés até à janela. Puxei o trinco o mais lentamente que consegui, para evitar o estalido, e abri uma fresta apenas, onde, de olhos fechados, encostei a têmpora direita. O ar gelado entrou de rompante contra a minha face. Uma brisa intermitente fazia as folhas do enorme carvalho roçarem umas nas outras. Não havia mais nada que se fizesse ouvir.

Esperei um pouco. O ronco de um motor aproximou-se até parar mesmo por baixo da janela do meu quarto. Seguiu-se o rebuliço dos gatos que se alimentavam no lixo a fugirem, as rodas dos contentores no asfalto, o lixo a ser despejado no camião, as rodas do contentor no asfalto mais uma vez.

O motor voltou a roncar e afastou-se até se desvanecer, logo após a curva ao fim do quarteirão. Tornei a ouvir o roçar das folhas da árvore, dando-me sinal de que o caminho estava livre.

Calcei as botas, vesti o casaco por cima do pijama e cobri a cabeça com um gorro. Saí e segui encostada às paredes dos edifícios, protegida pelas sombras das varandas, apesar de tudo ser sombrio àquela hora da noite. A hipótese de ser vista, perseguida, atacada, acelerava-me a respiração. Já tinha lido e relido todas as notícias sobre ele. Aquela rua era uma das suas eleitas, bastava-me estar atenta para não ser apanhada desprevenida.

Ouvi passos. Sustive a respiração e escondi-me numa reentrância da entrada de um prédio. Que raio estava eu a fazer, questionei-me, sozinha na rua àquela hora? Um maluco qualquer, que me desse um apertão no pescoço, deixava-me ali apagada, sem ajuda nem testemunhas que me valessem.

Os passos pertenciam a um homem que atravessava a estrada tão apressado que nem deu pela minha presença. Baixinho, velho e barrigudo; a arfar como um porco. Ele era o oposto. Atlético, alto, entre trinta e quarenta anos, assim o descreviam nos jornais. Deixei-me ficar onde estava e limitei-me a escutar. No escuro, os ouvidos funcionam muito melhor do que os olhos. Mais ninguém passou naquela rua até o sol anunciar o fim da noite.

Dormi uma hora, fui trabalhar e voltei a deitar-me antes de anoitecer. Acordei de madrugada, tal como fizera todas as madrugadas das últimas semanas. Abri uma nesga da janela do quarto, esperei pela passagem do camião do lixo e saí. Durante o dia, tinha tido mais novidades sobre ele. Outra violação, duas ruas abaixo daquela onde eu estivera de vigília. Fracassada, mais uma vez. Apesar dos cálculos, estimativas e algoritmos, ainda não tinha conseguido prever a sua rota com precisão.

Nessa noite, apostei na alameda do parque, ainda mais sombria do que as ruas do bairro. Ouvi um fungar disrítmico que me deixou em alerta. Escondi-me atrás do quiosque dos jornais e apertei as costas contra as suas paredes metálicas e geladas. Sentia o coração a rasgar-me o peito e a boca seca. Cruzei as pernas com força, tal era a vontade súbita de urinar. Estava cada vez mais perto. Só podia ser ele.

Já se sabia quase tudo, até o que costumava vestir. Calças de ganga e sweatshirt com capuz. Atacava com o rosto coberto e só as violava depois de lhes prender as mãos atrás das costas. Penetrava-as sempre por trás. Escolhia mulheres jovens, de estatura média e cabelos castanhos. Mulheres como eu. O fungar aproximava-se cada vez mais. Contraí as pernas, ainda cruzadas, com tanta força que tive um orgasmo. Desgraçada, lamentei-me; sem dormir, sem viver, em queda livre no abismo que me sugava e ao qual não conseguia negar-me. Ele estava ali, sentia-o. Virei a cabeça lentamente e desesperei. Era apenas um cão vadio. Tratei de escorraçá-lo a pontapé.

Ainda a recompor-me, vi um homem parado no fundo da alameda. E ele via-me, tinha a certeza. Envergava uma sweatshirt, com a cabeça coberta pelo capuz e as mãos recolhidas nos bolsos. Tinha ansiado tanto por este momento que nem sabia o que fazer.

Dei o primeiro passo, trémula, e avancei ao seu encontro. Também ele começou a caminhar na minha direção. Poucos metros antes de nos cruzarmos, parei. Implorava em silêncio que também o fizesse. Ele baixou a cabeça, ocultando o rosto, e desviou-se, contornando o meu corpo. Fechei os olhos e juntei as mãos atrás das costas, implorando pelo punho forte a imobilizá-las com fita adesiva e pelo hálito quente na minha nuca, antes de me fazer sua com ganas.

Mas não. Ele afastava-se. Seguiu o seu caminho, sem abrandar, sem me tocar, sem sequer olhar para mim. Que defeito teria eu que me tornava tão desprezível? Que terão feito as outras para despertar o seu desejo? Vinte e duas noites de espera, contei-as! Da ponta do meu queixo, escorriam lágrimas, baba, ranho e raiva. Cerrei os dentes e desfiz os escassos metros que nos separavam com passadas largas. Tirei a faca do bolso e, sem hesitar, cravei-a nas costas daquele cabrão tantas vezes quantas as que adormeci a desejá-lo dentro de mim. Deixei-o só, imóvel, para ser encontrado rígido às primeiras horas da manhã.

O torpor da vingança fez-me adormecer serena. Tinham acabado as insónias e os périplos noturnos. Nada me fazia prever que o amanhecer me traria uma angústia que desconhecia. Levantei-me desorientada, sem saber que dia era. Um nó no estômago fez-me vomitar no chão do quarto. Vi-me no espelho, despenteada e ainda com as mãos ensanguentadas. Ofendi-me, entre soluços e espasmos, antes de cair de joelhos num pranto asfixiante. Arrastei-me até ao sofá e liguei a televisão. Em nota de rodapé, passava a notícia de última hora: Noite de terror: adolescente brutalmente assassinado no parque e novo ataque do violador no terminal de autocarros. Suspirei, aliviada, e recostei-me abraçada a uma almofada. Ri, ri muito. Ri muito alto. O meu amor, afinal, continuava vivo.

Nessa mesma noite, voltei a sair.

 

SOBRE A AUTORA

Laura Vasques de Sousa

Nascida em 1978, por engano, em Lisboa.
Criada na Moita, de onde herdou o sangue, mas não as tradições.
Iniciou os estudos em 1985, por curiosidade própria, e ingressou na escola no ano seguinte, como a lei exigia.
É licenciada em Biologia Aplicada aos Recursos Animais (FCUL) e em Cardiopneumologia (ESTeSL), profissão que exerce.
Pratica regularmente exercício físico, panificação caseira, agricultura de varanda e jardinagem em vaso.
Desde o início desta aventura, esteve rodeada de livros, leituras e escritas, mas apenas depois dos 40 anos teve a lucidez de lhes fazer a vontade.