Pés que Olham o Abismo

de Susana Silva

 

Forget-me-not. Alguém decorou o meu quarto com papel de parede amarelo mergulhado nestas minúsculas flores azuis, um cortinado rosa para esconder todos os pés que passam pela minha janela e me espreitam no escuro, e um cavalo de baloiço pintado como aqueles na feira para quando eu crescesse. Um mar de lápis de carvão e folhas embala-me. Escondo a longa fita do cavalo no fundo da gaveta.

Deram-me um relógio. Está parado. Ensinaram-me que aqui o tempo não passa. Aprendi a contar as sombras que vivem nos cortinados. Tantas, por vezes. Em muitos dias, apenas o rosa me sustém.

Cresci, balancei, o cavalo perdeu as cores. Só me resta um lápis. A fita já não mora na gaveta.

Os pés transeuntes marcam o meu tempo, mas são sempre cinco horas. E todos os dias o laço de fita vermelha me olha, dependurado.

Abro o estojo ferrugento e traço a carvão mais um dia.

Amanhã, terei todos os lápis.

 

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Susana Silva

Susana Silva, também conhecida como Susie Saint-Claire, nasceu em Lisboa, mas foi Évora a cidade que a viu crescer. É oceanógrafa física, mas desde cedo que a escrita mora na sua gaveta. Em 2021, o seu conto de estreia, «O Palco Vazio», integrou a antologia de contos de terror Sangue Novo. Para Susie, a escrita é uma forma de expressão sensorial, que usa para pintar imagens aprisionadas na sua mente. Mergulhar na sua prosa poética é descer a um mundo de escuridão, melancolia e tempo…