Pingos de Morfeu, Agência do Sono

de Patrícia Sá, 11/09/2021

Havia várias noites que não dormia e, francamente, isso já o estava a cansar. As suas insónias não eram novidade, mas estava acostumado a recebê-las quando era um simples jovem inútil, que passava os dias a fingir que estudava quando os pais se lembravam da sua existência e resolviam inspecionar-lhe o quarto. Mas a sua recente condição de «Doutor» com um emprego «respeitável» e «decente» acarretava certas exigências e, para simular que conseguia corresponder-lhes, precisava de uma boa noite de sono.

Tinham-lhe falado da agência de passagem e, do que retivera da conversa, a pessoa tinha ficado bastante satisfeita. «Nunca tive sonhos tão relaxantes, António. Dormi que nem uma princesa!» Seria possível vender-se sonhos assim? E funcionavam? «Nem duvides! Bebi o sumo e apaguei logo!»

E foi então que, numa manhã de domingo, António se viu diante da loja ao fundo da esquina da rua que lhe foi indicada. PINGOS DE MORFEU, lia o letreiro. Entrou e deu de caras com um homem calvo, de bigode castanho e farfalhudo.

— Ora viva, caro senhor! — disse. — Em que posso ajudar?

— Bom dia — disse António. — O senhor vende sonhos?

— Vendo, sim senhor! Sonhos, pesadelos, comas, laxativos mentais… tenho um pouco de tudo.

— E podemos personalizar o nosso sonho?

— Pode, sim senhor!

— Ótimo — sorriu António, já a tirar a carteira do bolso. — Então queria comprar um sonho.

— Ah, isso é capaz de ser complicado.

— Porquê?

— Porque estão esgotados.

— Esgotados?! — os olhos de António pareciam ponderar sair do aconchego do seu rosto. —  Os sonhos esgotam?

— Já viu os tempos em que vivemos? — observou o vendedor. — Mas não se aflija, que está com sorte; apanhou aqui uma promoção esplêndida: dois pesadelos semanais e um laxativo de oferta.

— Mas eu não quero pesadelo nenhum!

— De certeza? Olhe que estes nem são muito maus; as aranhas só lhe começam a arrancar os olhos quando está prestes a acordar.

— Eu não quero aranhas nenhumas ao pé dos meus olhos! — exclamou António, com a face a fervilhar. Respirou fundo. — Ouça, só quero alguma coisa que me permita ter uma noite tranquila. Sabe, areia branca, um mar calmo, palmeiras… algo do género.

— Ah, sou capaz de ter uma coisinha dessas — disse o vendedor, pensativo. — Tem mar e areia; agora, no que toca ao tranquilo… o que acha de picos de pânico e uma sensação de afogamento?

— Vou-me embora! Isto é ridículo! — decidiu António e marchou até à saída, fazendo questão de fechar a porta com um estrondo.

Nessa noite, António deitou-se e preparava-se para mais uma noite em branco, quando sentiu uma presença no quarto. Abriu os olhos e a sua pequena curiosidade transformou-se em sobressalto: ao fundo da cama, estava o vendedor com uma longa faca.

Apercebendo-se de que António tinha despertado, o vendedor encolheu os ombros:

— Tenho de escoar os pesadelos de alguma forma, não tenho?

 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Sá

Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia Sangue Novo. Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com post-its.