Polifemo

de Catarina Pinto

Como uma esmeralda apodrecida, a luz. Verde, doentia. Zumbe como um mosquito. Vampira, sanguessuga.

Um jogo de sombras pincela a parede. É uma mariposa noturna que dança no abajur. Asas peludas como as de um gato.

Ela esvoaça e pousa no meu dedo indicador. Juro que sussurra, diz algo.

Sabes o meu nome? 

Acordo. A portada da janela bate na parede. Tudo aberto. O vento entra. A neve acumula-se no chão do quarto, branca e funérea. Meias ensopadas. Luto para fechar a janela. Perco-me na paisagem lá fora.

Só escuridão. Negra, densa, líquida. Como se pudesse mergulhar nela e nunca mais sair. Como se pudesse afundar-me, mão, pé, cabeça. Como num lago.

Acordo.

Tenho o rosto carregado de suor. Verifico o meu quarto. A secretária. A lâmpada. Há uma fresta de luz do Sol a escorregar da persiana um pouco aberta. A realidade, finalmente. Sereno um pouco, respiro. O coração galopa, salta, anda, repousa. Respiro mais.

Sabes o meu nome? 

Atiro os edredons num pânico. Não. Alucinei. Não houve voz nenhuma. Não pode ter havido. Estou apenas perturbada. Devia ter tomado aquele chá medicinal. Um pouco de sol nunca fez mal a ninguém, abro as portadas, subo a persiana.

Está um olho lá fora.

Maior que a minha cabeça, um olho gigante que me fita.

Só que não é um olho, é a ilusão de um. A asa da mariposa.

Ela esvoaça. O corpo… É uma mulher. Ela olha para mim. Não tem cara.

Mas olha.

Sabes o meu nome?

Não. Quero gritar. Não sei nada. Só quero acordar. Só quero acordar. Só quero acordar. Só quero acordar.

Dou uma chapada em mim própria.

Acordo.

Estou na minha cama. Outra vez. Já não confio nos meus olhos.

Respiro fundo. Gradualmente.

Levanto-me, de corpo a tremer. O relógio marca as seis e meia. Ainda o Sol não se levantou.

A escuridão arrepia-me. Acendo o candeeiro. Pego na escova que a minha avó me deu. É de madeira de acácia, feita à mão. Reviro-a nos dedos como um amuleto de proteção.

A parte de trás tem uma série de baixos-relevos. Normalmente, não olho para eles. Mas reparo.

Uma mariposa noturna.

Quase me rio. Ponho-me em frente ao espelho alto para me pentear.

A imagem no espelho…

**

Finalmente, vai sair do casulo. 

O que é, papá?

Uma borboleta noturna, uma mariposa Polifemo. Antheraea polyphemus.

O quê? 

Há uma lenda que diz que, em cada mariposa, está presa uma alma penada.

Isso é verdade?

**

Acordo. Estico as asas. Há um candeeiro verde que zumbe por cima de mim. Há uma abertura.

Esvoaço para a noite.

 

SOBRE A AUTORA

Catarina Pinto

Catarina Pinto nasceu em 1999, em Faro. Apaixonou-se pelos livros desde que aprendeu a ler, e a escrita seguiu o mesmo caminho. Nestas primeiras aventuras literárias, deslizava sempre para o caminho da ficção especulativa, especialmente fantasia e (de vez em quando) terror.

Em 2020, submeteu um conto, «Fragmento Celeste», ao concurso Hopepunk da Editorial Divergência, sendo este o seu primeiro trabalho publicado. Prefere escrever romances, mas ainda não acabou nenhum.