Quatro da Manhã

De Maurício Borges

 

Era apenas mais uma noite, até deixar de ser. 

Recordo-me sobretudo da energia que pairava dentro daquele casarão abandonado. A cada bafo, cada gesto, cada salto, uníamo-nos num ritual não planeado de simbiose, comandado pela estrondosa música eletrónica que quase deitava as paredes abaixo.

De olhos praticamente fechados, fluía, vislumbrando parte das faces que me rodeavam quando as luzes soluçantes permeavam a escuridão. 

O copo de plástico que segurava era infinito. Por muito que bebesse daquela poção incógnita de sabor horrível, ele voltava magicamente a encher-se, como num desafio a testar o sentimento de imbatibilidade que me comandava o corpo.  

Sentia tudo. O calor que emanava do meu cabelo encharcado. Cada gota que caía nos meus ombros e me acariciava o corpo na descida. As leis da física pareciam também elas prontas a servir os meus desejos. Por momentos, levitei.

Até que… tudo parou.

Abri os olhos com esforço. As luzes eram frias e escassas. O meu corpo não saltava, era arrastado pelo chão, pela gravidade e por algo mais. Alguém.

Assim que a minha cabeça deixou de andar à roda, o que vi foram uns sapatos de velho, imaculadamente engraxados, sem qualquer arranhão. O eco dos curtos passos acompanhava a melodia da chuva fina que caía sobre a calçada.

Por momentos, pensei que fosse o meu pai, a levar-me para casa, mas até naquele estado essa ideia não fazia sentido. Além de os meus pais viverem a centenas de quilómetros da cidade em que estudava, o meu pai, quando havia um bêbado a ser carregado, nunca era a pessoa que o carregava.

— Onde é que eu estou? — balbuciei, ao ganhar novamente controlo da boca. 

— Relaxa. Estamos quase a chegar — disse-me a voz, quase reconfortante.

Enquanto ele me continuava a carregar aos ombros, ouvi ao longe um bater de asas. Talvez um pássaro perdido na camada espessa de nevoeiro que cobria as ruas. 

— Não te preocupes, eu trato de ti Simone.

Aquele tom. Sussurrante e falado para dentro. Uma voz que não me era estranha, mas à qual não conseguia associar ninguém.

— T-tratas de mim?

Com a manga da camisa à volta da mão, levantou-me o queixo de forma a que lhe visse o rosto. Arregalei os olhos ao máximo. Precisava de respostas, mas não as tive.

— Eu não te conheço! 

Libertei-me ao empurrá-lo, mas apenas consegui dar dois passos até cambalear e cair para o lado. 

— Não tem piada! Sou eu, o André — disse de forma incrédula. 

Agora lúcida, vi-o. Um misto de raiva, incompreensão e desamparo moldava-lhe a cara. Era um rapaz na casa dos trinta, branco como a Lua que espreitava naquela noite, com um mullet de cabelos encaracolados e um bigode farfalhudo.  

— A pessoa que esteve sempre lá para ti? Que te abria a porta do prédio quando chegavas e já nem conseguias dar com a chave na fechadura?

Respirou fundo enquanto se aproximava e me encobria em escuridão. O meu olhar era de pânico.

— Que te punha na caixa do correio as cartas da tua mãe, a queixar-se das tareias que o bêbado do teu pai lhe dava, e que por engano iam parar à caixa errada?

Finalmente, as minhas sinapses dispararam. Um vizinho. Alguém com quem interagi não mais do que quatro vezes nos meus três anos nesta cidade, que em nada se comparava à minha pequena aldeia natal. 

Arranquei de imediato na única direção onde as casas ainda tinham alguma iluminação, mas, mais uma vez, o desespero que me queimava por dentro não chegou. Em poucos metros, ele apanhou-me e projetou-me contra um sinal de trânsito.

— É disto que gostas? Queres que trate de ti como o teu pai trata da tua mamã?

Com tudo que me restava, enchi os pulmões e gritei.

— Ajuuuuuuuuud-

Rapidamente, tapou-me a boca com uma mão e agarrou-me a garganta com a outra.

— Chiu. Tem calma que eu já te ajudo.

Havia sangue a escorrer-me da têmpora. O meu corpo afundava-se. Ele, vendo-me sem réstia de defesa, soltou-me a garganta e a boca. 

Consegui respirar de novo. De cabeça baixa, vi um reflexo difuso numa poça no chão. A custo, olhei para cima e vi-o desapertar as calças e baixá-las. Quis parar de respirar, morrer naquele mesmo instante.

— Eu amo-te, Simone. E sei que tu também me vais amar. Vais ver. 

Levantou-me o vestido. Quando ia baixar-me as cuecas, no entanto, o esvoaçar voltou. Mais forte. Algo pesado caiu atrás dele. 

Mal olhou por cima do ombro, soltou um grito, prontamente interrompido por um som arrepiante a cortar o ar. Um jorro pintou-me de vermelho. À minha frente, vi o intestino dele a desenrolar-se.

A mão com unhas compridas e podres que lhe atravessara o tronco retraiu-se, e o corpo caiu inanimado, com a cabeça voltada para mim. Nos olhos dele, havia um medo extremo, os olhos de quem viu um demónio, o mesmo olhar que eu deveria ter quando lhe percebi as intenções.

Senti nojo, confusão, mas sobretudo alívio. Ainda assim, não consegui evitar o vómito, que projetei instintivamente para cima do que passara a ser um literal «monte de merda». O que quer que viesse a seguir já não me preocupava. 

Ergui a cabeça e vi-a, estática. Tinha a aparência de uma velha, alta e esguia, coberta apenas por um fino manto branco, com cabelos longos e despenteados que lhe ocultavam a face. Deu um passo em frente. Embora não o visse, sentia o seu olhar fixo em mim, mesmo quando se baixou e aproximou os lábios do sangue que vazava do corpo. 

Não sei o que me deu, mas não consegui controlar-me. Senti a necessidade de, pelo menos, retribuir o favor.

— Se fosse a ti, não bebia isso. De certeza que te vai fazer mal.


SOBRE O AUTOR

Maurício Borges

Natural de Braga, é formado em arquitetura pela Universidade do Minho. Sempre teve um amor pela criação de mundos e das suas histórias, o que o levou às suas paixões principais: a banda desenhada e o cinema.

Desde 2019 que trabalha na indústria cinematográfica independente portuguesa, no departamento de arte e no de realização e escrita, perseguindo de forma cada vez mais ativa e ambiciosa projetos de maior escala.