RELATÓRIO DE ATIVIDADES DO AGENTE IZRO NA TERRA

DESDE A QUEDA DE ROMA (476, d. C.) ATÉ AO ANO CORRENTE (2023, d. C.). ACERCA DOS NOVOS E MAIS EFICAZES MÉTODOS DE CONDENAÇÃO DAS ALMAS HUMANAS

de Patrícia Sá

 

Supervisor: Príncipe Infernal, Belial, Senhor da Iniquidade

Agente: Demónio Izro, Departamento de Prejuízos e Ruína

Objetivo Primário: Auxílio na ascensão do Nosso Grande Senhor, Satanás, o Adversário

Objetivos Secundários: Adquirir almas para o Nosso Grande Senhor, Satanás, o Adversário; espalhar o caos e a miséria

 

Relatório:

Ó Iníquo Belial,

As metas estabelecidas no milénio anterior foram, tal como previsto, alcançadas. Não devido a qualquer interferência de minha parte. De facto, os humanos evoluíram na sua malvadez de tal forma que já nem precisam dos meus empurrões[, nem sei o que ainda estou aqui a fazer]. Mas isso não indica um fracasso da presença demoníaca; muito pelo contrário. O que procuramos são humanos malvados. E haverá maior malvadez do que a concebida e nutrida pelo próprio humano?

Tal como argumentei na minha apresentação de 1762, acerca das vantagens da iniciativa humana (Cf. Ficheiro 63421AbFGk134), uma abordagem mais distante pela parte do demónio acelera o processo de condenação da alma. «Porquê?», pergunta Vossa Baixeza novamente, para inconveniência de ambos. Ao que eu respondo: com uma menor influência demoníaca, é o humano que arquiteta e pratica o ato pecaminoso; cada etapa é fruto da intenção, da vontade e do pensamento do humano. Haverá maior confirmação da sua iniquidade?

Os resultados desta abordagem têm-se revelado muito promissores, tal como os anexos do presente relatório ilustram (Cf. ANEXOS, entre os quais destaco, dos EVENTOS A GRANDE ESCALA: CRUZADAS, 1095–1699; COLONIZAÇÃO DAS AMÉRICAS, 1493–1898; HOLODOMOR, 1932–1933; SHOAH, 1941–1945; REALITY TV, 1979–). Nada do que eu poderia imaginar se compara aos requintes de malvadez que testemunhei ao longo dos anos[, o que me leva a questionar o meu papel e o meu propósito; na verdade, o propósito de todos nós. Para quê toda esta fantochada? Para quê um sistema de intervenção se eles são piores do que todo o Inferno junto], o que constitui um motivo de orgulho para toda a Organização Infernal. Longe estão os dias em que era necessário um segredar ao ouvido ou um disfarce para facilitar a infiltração em grupos e elites. Basta agora uma tosse numa sala escura, e a [noite] vida de muitos pode ser arruinada num piscar de olhos.

Quero ainda lembrar os méritos da aplicação das invenções humanas nas torturas infernais, desde a instauração da Santa Inquisição até à atualidade. A minha estada na Terra impede-me de desfrutar com frequência das demonstrações de infelicidade que, sem dúvida, deleitam muitos nas ruas de Satanás, [o que me permite continuar a usufruir de sonhos relativamente leves,] mas os relatórios recentes acerca do Sistema Prisional do Abismo confirmam a eficácia de tais métodos, quer a nível agonizante, para o humano, quer a nível lúdico, para o demónio.

Nesse sentido, as vantagens da não-interferência demoníaca são, a meu ver, muito superiores às dos métodos tradicionais. A manipulação artesanal da alma é um exemplo da mestria e engenho do demónio, mas, não poderá o humano já ser cruel, horrível, nojento, sem o manuseamento demoníaco? A proeza é de quem, se considerarmos esta situação? Além disso, será uma alma corrompida verdadeiramente apetecível? Ou será melhor uma alma construída por diversas escolhas conscientes e voluntárias? Não será esta mais apelativa ao nosso Mestre, o Príncipe das Trevas?

E com isto, o mísero demónio Izro espera ter provado que não se andou a desleixar na sua tão importante missão[, apesar de o desleixo ser, em teoria, encorajado entre os nossos, exceto no que toca ao trabalho, aparentemente]. Dado o elevado grau de produtividade deste método, bem como as várias e profícuas contribuições para a Organização Infernal que este tem fornecido, continuarei o meu trabalho do modo explanado.

Crendo ter sido satisfatoriamente desagradável, apresento os meus piores cumprimentos.

 

O Demónio Izro


 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Sá

Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia Sangue Novo. Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com post-its.