Relógio das Más Sortes
de Cláudio André Redondo
Tratava-se de uma espécie de relógio que, em vez de horas, mostrava azares. Tinha cinco pontos, cada um com uma inscrição: «Em paz!», «Pequenos azares.», «Azares relativos…», «Grandes azares!!!» e «Azares fatais†».
Jeremias ficou desapontado quando percebeu que aquilo não parecia possuir qualquer tipo de mecanismo, estando o ponteiro sempre fixo na posição «Em paz!». Considerava todas as superstições uma verdadeira patetice. Comprara-o apenas para pregar partidas aos amigos, mas, se não se mexia, a piada desaparecia.
Estranhou quando, um dia, viu o ponteiro a apontar para «Pequenos azares.». Estranhou ainda mais ter tido uma avaria no carro nesse dia e o relógio ter voltado para «Em paz!». Piorou quando, dias mais tarde, voltou a saltar para os «Pequenos azares.» e perdeu a carteira. Até o seu céptico subconsciente começava a procurar causalidades entre os factos.
Não entendia como o ponteiro às vezes se movia quando, no restante tempo, era impossível fazê-lo. Foi quando reparou pela primeira vez no som. Um tiquetaque ténue, quase inaudível. Nem tinha a certeza se este realmente existia, mas certamente teria de haver algum mecanismo escondido que explicasse aquele comportamento.
A ideia de o ponteiro se mexer enquanto não o estivesse a ver tirou-lhe o sono. A sua missão de vida passou a ser observar aquele estranho engenho. Deixou de sair de casa, de comer, de dormir. Tinha de ter a certeza de que aquilo não se movia. E isso não acontecia enquanto o observava.
O pior foi o barulho. O tiquetaque tornou-se tão intenso que o ouvia agora em todo o lugar, quase como se viesse de dentro de si. Não ajudou que, por vezes, fizesse lembrar o bater de um coração mecânico.
O tempo passou, a vigília manteve-se. Olheiras profundas residiam-lhe nos ossos do rosto, os ombros pesavam trazendo consigo as costas e a cabeça. O relógio não voltou a mexer-se. O som permaneceu. Ganhou a cadência de um coração saudável. Embalou-o. Adormeceu.
Acordou num sobressalto, temendo o pior. O coração mecânico batia acelerado. Talvez estimulado por isso, o ponteiro moveu-se. Passou, lentamente, pelos «Pequenos azares.», «Azares relativos…», «Grandes azares!!!», chegou aos «Azares fatais†» e parou. Depois disso, apenas o silêncio.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Cláudio André Redondo
Apaixonado por livros, música, cinema e videojogos, foi-se aventurando por essas áreas à descoberta de novos mundos e formas de se exprimir. Sente no terror o conforto daquela mantinha que nos aquece nos dias frios, e começou, recentemente, a tirar contos do género da gaveta. Espera brevemente tirar outras histórias, filmes, videojogos e músicas. Resta saber que figuras e lugares sombrios o acompanharão.