Sacramento

de Marta Nazaré

 

Pouso o olhar turvo na consistência azul-escura das tuas formas, hipnotizado. Esforço-me em vão por dominar o tremor febril nas mãos de pestilência acastanhada. Como é possível que estejas mais belo a cada dia que passa? A minha mente entrega-se a divagações. Não me recordo de quando te encontrei nesta região desabitada de glórias, na infertilidade de bem-aventuranças. Só me vem à memória a necessidade desmesurada de venerar-te que nunca me largou. Esse brilho  apoderou-se da minha vontade quando te desenterrei, mesmo na cegueira da gruta. Desde então, ávido, vergaste-me a dar-te tudo. Não permitirei que olhares indiscretos te vejam e falsos devotos te homenageiem mais do que eu.

Encosto-te ao rosto, ansioso pelo pulsar divino da tua essência. Alucino. Um doce delírio que recuso partilhar. Perco-me na textura abrasiva da devoção sem pedir nada em troca. Absorvo o bálsamo de terra apodrecida num vício interminável de ti. Ainda és meu. Só meu. Meu.

Apesar da sujidade a encobrir-te, a tua aparência não se conspurca, despertando neste penitente o milagre da surpresa. E com as mãos tingidas das camadas de vermelho-sangue de fezes desfeitas, levo-te à boca em sacramento. Saboreio a tua divindade acre. Numa reza cerimoniosa, engulo-te com sagrado respeito. Consumo-te mais uma vez. Somos um só nesta infusão de sangue e sedimentos fecais. Diamante Esperança, gangrena da minha eterna veneração, abençoa com a santidade corrupta este fiel recetáculo.

SOBRE A AUTORA

Marta Nazaré

Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.

Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.

Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o error infantojuvenil.