Salomé
De Inês Videira
Tinha sido uma semana longa. Os dois advogados estavam necessitados de alguma distração. Saíram do escritório, guardaram as gravatas no carro, abriram os primeiros botões das camisas brancas e imaculadas e dirigiram-se ao bar do costume.
O espaço acanhado cheirava a especiarias. As luzes baixas refletidas nos vitrais coloridos e a música árabe que se fazia ouvir eram radicalmente diferentes do seu quotidiano cinza-corporativo, embalado por burburinhos e sons de elevador. Talvez por isso Manuel e Mário gostassem tanto de ali ir.
Normalmente, sentavam-se algumas horas a conversar sobre nada e a beber chá de menta, servido em elegantes bules prateados, largando o dia de trabalho como uma cobra a largar a pele. Naquele dia, porém, algo de diferente lhes chamou a atenção.
Começou quando a música ambiente parou, dando lugar a uma outra mais intensa, mais próxima. Manuel rodou na cadeira para ver surgir músicos em cortejo, com instrumentos orientais que não sabia identificar. A segui-los, atrás de um flautista de barbas brancas, serpenteava uma bailarina, envolta em véus dourados semitransparentes, rodopiando sobre si mesma.
Toda a sala se hipnotizou pela dança sinuosa da jovem, ao som dos sopros, com movimentos redondos que começavam nas ancas enfeitadas com sonoras moedas douradas, ondeando pelo ventre desnudado e pelos braços, morrendo em suaves círculos nas suas mãos.
A bailarina nunca tirou os olhos de Manuel, sorrindo para ele, que a observava, engolindo em seco, ocasionalmente humedecendo os lábios com a língua. Não se permitia sequer pestanejar, receoso de que, se quebrasse o contacto visual, quebraria também aquele feitiço.
Os movimentos da jovem acompanhavam as mudanças da música, mas toda a dança cantava as palavras de Salomão.
Sou um narciso de Saron,
Uma açucena dos vales.
Manuel conseguia ouvir. E respondia-lhe com o olhar.
Como uma açucena entre espinhos,
É minha amada entre as donzelas.
A percussão incitava a jovem a caminhar, o seu corpo vibrando com movimentos rápidos, rodando sobre si mesmo em êxtase, acabando mesmo em frente de Manuel, de rostos apenas a centímetros um do outro. Ela sorria-lhe como se o quisesse devorar.
Macieira entre as árvores do bosque,
É o meu amado entre os jovens.
À sombra eu quis sentar-me,
Com o seu doce fruto na boca.
Aplausos.
— Diz-me o que queres de mim. Dou-te tudo o que me pedires — acabou por sussurrar Manuel, num fio de voz.
A bailarina aproximou-se mais, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha antes de lhe segredar:
— Quero a cabeça do teu amigo.
Pedindo-o com a naturalidade de quem pede um ramo de rosas, voltou-lhe as costas e deixou-se abraçar pelo restante público, delirante com a atuação.
Ao lado de Manuel, Mário sorria e aplaudia de pé.
***
Nos dias que se seguiram, Manuel não conseguiu dormir. Cada vez que fechava os olhos, era assombrado pelo sorriso da odalisca, pedindo-lhe a cabeça do amigo.
Deixou de ir trabalhar, ficando sentado no sofá, praticamente sem comer, sem dormir. Não atendia o telefone. O som da percussão enchia-lhe o cérebro, ouvindo-a como se a tocassem aos seus ouvidos, com o barulho das moedas no cinto da bailarina a tornar-se cada vez mais ensurdecedor.
Quero a cabeça do teu amigo.
Usaria um cutelo ou um machado? Um serrote? Ouviu dizer que os bons espadachins conseguiam decapitar os adversários com um só golpe, indolor. Se fosse colher a cabeça do amigo, tinha de ser indolor.
Espantou-se perante o absurdo do pensamento: estava realmente a planear assassinar Mário? Porque uma mulher, cujo nome nem sabia, lho tinha pedido?
O pensamento, contudo, não o largava. Estaria já condenado ao Inferno só por pensar?
Os recipientes de comida que mandava vir acumulavam-se em cima da mesa, atraindo mosquitos e fazendo com que o bolor crescesse nas bordas, mas não se atrevia a sair de casa, nem sequer para levar o lixo, receoso de que os pés, enfeitiçados, o conduzissem até Mário.
Não podia. Não podia. Se estivesse trancado em casa, não se tornaria num assassino.
Olhou-se ao espelho da casa de banho, não reconhecendo o próprio rosto — por barbear, de faces encovadas, com os olhos raiados de vermelho. Nunca tivera tão mau aspeto. Ainda assim, não podia sair de casa. Enquanto ali estivesse, Mário estaria a salvo.
Mas a música continuava a atormentá-lo.
Tum-tac-tumtum-tac.
Tum-tac-tumtum-tac.
Tum-tac-tumtum-tac.
Tum-tum-tum — Manuel, estás aí? Abre a porta!
Sobressaltou-se ao ouvir a voz de Mário. O que é que ele estava ali a fazer?
— Vai-te embora! É para o teu bem!
— Deixa-te de merdas! O que é que te aconteceu? Há semanas que ninguém sabe de ti… Abre a porta, senão arrombo-a!
Manuel sentou-se no chão, agarrou a cabeça a ranger os dentes, arrancando tufos de cabelo enquanto esperneava, forçando-se a não se levantar, a não abrir a porta.
Tum-tac-tumtum-tac.
Tum-tac-tumtum-tac.
TUM-TAC-TUMTUM-TAC.
— MANUEL!
A música parou. Manuel deixou cair as mãos e relaxou as pálpebras, sentindo o ânimo a sair-lhe do corpo.
— Já vou — disse. E levantou-se.
***
Trauteando uma música sem letra, a bailarina acendeu a luz e poisou a caixa em cima da mesa, com os dedos a tremer de antecipação.
Maravilhosa! Nem todos deixavam escorrer o sangue antes do envio, mas Manuel tinha feito um excelente trabalho. O corte na base do pescoço era estranho e irregular, tornando difícil discernir o objeto que tinha usado para a decapitação, mas era claro que tinha doído. Pobrezinho.
Colocou a cabeça na prateleira e sentou-se na poltrona, a admirar a sua coleção.
Sorriu. Ia precisar de comprar mais uma estante.
SOBRE O AUTOR
Inês Videira
Inês vive rodeada de livros desde que aprendeu a ler. Reza a lenda que, quando acabou o livro de Português do 1.º ano, desatou a chorar, porque não tinha mais livros — algo que a mãe resolveu prontamente, com um bonito volume dos Contos de Grimm. Uma coisa levou à outra, então, aqui estamos.
Experimentou escrever em vários géneros ao longo do tempo, e parece que aterrou no fantástico, ocasionalmente escurecendo-o o suficiente para chegar ao terror.