Ser Indesejado

de Sandra Martins

 

Sinto o sol a bater na cara através dos raios que passam pelo vidro da janela do quarto. Abro os olhos e, num salto, saio da cama antes que ela também acorde e me tente novamente abafar com os lençóis, cobertores e almofadas.

Sigo para a casa de banho. Como sempre, as torneiras seguem-me com os olhos, faço-lhes festas na cabeça para as sossegar enquanto abro a água quente e começo a despir-me.

Tenho de ter cuidado especial com o chuveiro, é sempre o mais predisposto a atacar. Lá do alto, persegue-me e até já me arrancou um pedaço de orelha.

Tomo banho rapidamente, mas hoje é a torneira do bidé que está particularmente agressiva. Tenta morder-me os calcanhares. Tenho de sair da casa de banho encostada à parede para não levar uma dentada.

Dirijo-me à cozinha. O frigorífico tenta atingir-me com porta. Ligo o micro-ondas e, após breves segundos, vejo que ele transformou os meus cereais numa matéria gelatinosa e semelhante a carne. Estou a ficar atrasado, engulo tudo duma vez e recuo para o corredor, antes que porta do frigorífico me acerte.

Calço as botas enquanto me sento no sofá. Como é hábito, ele faz-se amigo, faz-se quentinho e começa a abraçar-me. Na verdade, é um fingido. Levanto-me, dou-lhe uma biqueirada e grito: «Ainda não foi hoje que me engoliste!»

Visto o casaco, agarro nas chaves, saio e penso: Quem me dera não morar aqui…

 

SOBRE A AUTORA

Sandra Martins

Sandra Martins nasceu e vive em Lisboa. Estudou Gestão e Estatística. Escrevia ocasionalmente com o objetivo de informar.

A pandemia e o confinamento tornaram a ocasião cada vez mais frequente e, depois de alguns cursos na Escrever Escrever, começou a fase de exploração, para criar algo mais interessante.
O desconforto e as incertezas que marcaram os últimos anos trouxeram a público algumas experiências pouco racionalizadas e potencializaram a escrita de terror.