Sexta à Noite

de Maria Varanda

 

Apercebera-se do desenvolvimento de filamentos negros na semana anterior. Observados de perto eram estruturas fascinantes, pequenas colónias de seres vivos pluricelulares. Vida que crescia onde outra já não existia — a última seduzindo-o muito mais do que a primeira.

A textura da carne tinha ultrapassado a linha do suave e aprazível. Perdera toda a firmeza e começava, em certas áreas, a tornar-se numa papa gelificada. Não tardou muito até o cheiro se tornar insuportável, e até que as dezenas de ambientadores elétricos e velas perfumadas não conseguissem atenuar o odor a carne morta. Talvez da próxima vez devesse reduzir ainda mais o termostato, talvez isso ajudasse a prolongar a estada.

Mas, com o amolecimento da carne e com os odores, vinham também os fluídos, e ele sabia-o. Nada, no entanto, o preparara para aquela sexta-feira. Decidira que o melhor seria ir para lá da conservação com medidas ambientais e experimentar o embalsamento; podia ser que nem comprometesse o prazer.

A meio do coito, extasiado e provavelmente embriagado com a inalação dos fungos, ou talvez apenas com todas as sensações que advinham da quietude e imobilidade do corpo sob o seu, puxara demasiado os cabelos baços da farta cabeleira e ficara com eles na mão.

Acelerou o ritmo das ancas, perdido nos deleites do momento. Com a velocidade, aumentou também a profundidade da sua inserção, uma decisão mal calculada. A púbis gélida que envolvia o seu pénis não só era demasiado pequena para o ato como avançara bastante mais do que ele esperara no estado de putrefação. O baixo-ventre implodiu com tamanha pressão, levando-o a sentir os órgãos no interior da cavidade abdominal. Um líquido cinzento-esverdeado nauseabundo correu-lhe por entre as pernas e exsudou por entre as fissuras até então invisíveis na barriga dela. O cheiro ultrapassava as proporções do tolerável, até para ele. Perdera a tesão e correra para o duche.

Vestiu a sua melhor camisa, de linho branco imaculado, combinando-a com o seu par de calças favorito, que lhe acentuava as nádegas. Olhou-se ao espelho, viu o perfil esquerdo, confirmou o direito. Atrás, na cama, pendiam os cabelos loiros de uma rapariga que ele conhecera no jardim perto de uma escola, e que prontamente se voluntariara para o ajudar a encontrar o seu cão perdido. Ele não tinha cão. Só uma trela. Um engodo fácil.

O cheiro era intenso, mas o líquido espesso parara de escorrer antes de atingir a carpete de pelo. Trataria dela depois. A sensação dos intestinos contra a ponta do pénis tinha sido uma sensação nova. Não tinha desgostado de todo. Talvez ainda conseguisse aproveitá-la para uma ménage, se lhe desse um último banho. Ou talvez o corpo se desfizesse dentro de água. Logo, descobriria.

Borrifou quase metade do frasco de perfume da Dolce & Gabanna, escondeu a faca no coldre em torno da perna esquerda e saiu ao engate: estava na hora de arranjar uma miúda nova.

SOBRE A AUTORA

Maria Varanda

Nasceu no ano de 1994, sob uma lua minguante, em Sintra, e cresceu a ouvir histórias da aldeia, sobre o papão e ossos escondidos na cave — ganhou-lhe gosto. Está sempre à procura de inspiração na vida real para mais uma história, mas na falta de ideias basta tirar o tabuleiro de ouija, acender umas velas e esperar. Depois, é só passar a mensagem para o papel. Procura-se quem queira ouvir.

A mensagem parece ter chegado aos ouvidos de alguns, com a atribuição do Prémio Adamastor de Ficção Fantástica ao seu conto, «Anfitrite».