Sonhos e Pesadelos

de Marta Nazaré

À vida de sonho do jovem Abílio, com todas as comodidades do mundo moderno, só faltava uma coisa para que fosse perfeita. A sociedade encurralara-o numa «ilha virtual», fechara-o em teletrabalho forçado e, à exceção do estafeta da Glovo e da gestora de projetos da empresa para a qual trabalhava, o rapaz não contactava com mais ninguém. Ansiava por companhia.

Certo dia, após uma reportagem na TVI sobre canis, tomou a decisão de adotar um patudo. A bolinha de pelo de pequeno porte que levou para casa facilmente se adaptou às exigências de um T2 na zona velha de Lisboa. O animal era tudo quanto tinha sonhado, e os dias recheados de animação aproximavam-se da perfeição procurada, mas não era bem deste tipo de animação que ele estava à espera. O chihuahua, calmo durante o dia, levava as noites em sonhos agitados, a acordar o dono vezes sem conta. E ao toque do despertador, Abílio, estremunhado, dava sempre com o pequenote a fitá-lo e com um objeto aos pés da cama.

De início, interpretou essa mania estranha como uma forma de agradecimento. O seu fiel amigo podia estar a expressar o que sentia por si. Mas, quando as coincidências se tornaram impossíveis de ignorar, começou a desconfiar de algo mais sinistro.

No primeiro dia, recordou Abílio, o cãozinho trouxera-lhe uma caneta que rebentara no bolso da camisa a meio daquela reunião virtual com o chefe. Não foi promovido. No dia seguinte, trouxera-lhe a carteira e foi vítima de phishing. Perdeu quase todas as poupanças. Depois, uma lanterna. E faltou a luz. O que o obrigou a fazer noitada para recuperar os projetos em atraso.

Nessa noite, decidido a observar o pequenote na agitação noturna habitual, entregou-se a conjeturas. Estaria o seu cão a ter sonhos premonitórios e a tentar avisá-lo? Ou andaria o animal a atrair o azar? Ou pior, a conspirar contra si, atormentando-o com enigmas todos os dias? E nestes pensamentos se perdeu até ao raiar da manhã, quando estava acordado para testemunhar todo o processo.

Quando o canídeo se levantou, seguiu-o até à cozinha. Estacou ao abarcar o objeto que ele abocanhava. Invadido pelo pânico, pegou no chihuahua e nas chaves do carro. Saiu desvairado. Talvez conseguisse reverter o destino se o devolvesse ao canil, pensou. A caminho da viatura, o objeto afiado que o cãozinho ainda transportava tilintou ao cair ao chão. O vulto que seguia o par apanhou-o e aproximou-se. Na comoção que se seguiu, o destino de Abílio cumpriu-se na calçada com salpicos de vermelho. Levaram-lhe os pertences e o Pesadelo, nome que, com um certo carinho, acabara por dar ao companheiro.

 

SOBRE A AUTORA

Marta Nazaré

Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.

Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.

Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o error infantojuvenil.

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