Sono Profundo

de Cláudio André Redondo

Desisto. Nem sei por que ainda tento. Sento-me na borda da cama e fico ali, simplesmente, a contemplar o vazio. Este é o quarto ou quinto dia sem dormir? Já nem sei. Tem custado tanto que começo a perder a noção das coisas. Do que é real, do que não é. Sinto que mais duas ou três noites destas e o meu cérebro avaria de vez. Kaputt, finito, sem reparo. E, antes de isso acontecer, prefiro enfiar um balázio na tola e descansar para a eternidade.

Levanto-me. Vou à casa de banho e assusto-me com a imagem que vejo no espelho. Estou ainda mais magro do que o normal. Os meus olhos parecem negros devido ao tamanho das olheiras. Não aguento mais aquele estranho que me contempla e fujo para a sala. Vou buscar um cigarro. Tento acendê-lo. O isqueiro não funciona. Devia ter comprado um novo, mas esqueci-me. Isso foi quando? Hoje? Ontem?

Vou à cozinha à procura de fósforos. Só há um. É bom que não o desperdice. Acendo-o. Aparece uma pequena chama e… merda. Falasse mais cedo e mais depressa se apagava. E agora? Nem a porra de um cigarro posso fumar. Devo ter mais fósforos algures, ou um isqueiro velho numa gaveta qualquer. Procuro por todo o lado. Na cozinha, na despensa, nada. Passo para o resto da casa, revolvo todos os bolsos, mochilas e ranhuras. Neste apartamento, não há fogo. Talvez possa usar dois pauzinhos como um índio. Rio-me alto da minha própria piada. Rio para não chorar.

Que horas são? O relógio de parede a imitar os antigos de cuco diz que são seis e trinta e sete. Parece a altura perfeita para ir à estação de serviço. Visto qualquer coisa rápida e preparo-me para sair. A porta está trancada. Mas eu nunca tranco a porta. Procuro pela chave, não a encontro. Percorro mais uma vez a casa, mas não há sinais dela em lado nenhum. Tento recordar a última vez que a usei. Não consigo. Não me recordo de ter saído. Aliás, apercebo-me agora, não me recordo de nada dos últimos dias. Mas eu trabalho e tenho a certeza de que não faltei. Eu nunca falto. Então porque é que não me lembro de nada? É como se a última vez que saí tivesse sido há meses, talvez mais.

Tento desesperado abrir a porta. Impossível. Parece que vou ter de ligar a alguém. A Joana tem uma cópia da chave. Tenho a certeza de que vai detestar ser acordada a estas horas, mas é uma emergência. Uma emergência estúpida, mas ainda assim uma emergência. Procuro o telemóvel para lhe ligar. Não o encontro. A coisa começa a ser absurda. Desta vez, até o colchão da cama levantei, tirei as almofadas do sofá, virei móveis do avesso. Não está aqui. Será que enlouqueci, me tranquei em casa e deitei tudo fora?

Vou até à janela da sala, abro-a e tento vislumbrar alguém que me possa ajudar, mas está tudo tão escuro. Demasiado escuro. Devia conseguir ver alguma coisa, mas apenas existe negro, nada mais. Verifico novamente as horas. Seis e trinta e sete. Como assim? Tenho a certeza de que já passaram alguns minutos. O relógio deve estar avariado. Nunca foi muito fiável. Provavelmente, é bem mais cedo. Isso explicaria a escuridão. Será que é lua nova e faltou a luz na rua? Isso explicaria, pelo menos, parte disto. Mas não consigo deixar de sentir que o mundo acaba um ou dois metros depois da minha casa. É como se, para lá disso, não houvesse nada. Estico a mão e apenas sinto frio, um frio estranho, que parece aumentar quanto mais longe o meu braço está. Devia estar mais calor. Estamos no Verão. Ou será que não? Que dia é hoje? Solto um grito de raiva enquanto bato na cabeça várias vezes para fazer o cérebro funcionar.

Vou até à casa de banho para lavar a cara. Preciso de acordar e pôr os pensamentos no sítio. Abro a torneira e levo a água fria ao rosto. Pareço ainda mais velho e cansado do que quando acordei. Observo as rugas e os cabelos grisalhos. Quando é que estes apareceram? Não me lembro de envelhecer tanto. Toco as rugas do espelho e estas ficam ainda mais carregadas, mais nítidas. E então vejo. Do outro lado, o eu verdadeiro. Uma velha carcaça ligada às máquinas que, sem qualquer apego, me mantêm vivo. Consigo ouvir, através do reflexo, o zumbir das mesmas. É assim há anos, aquele zumbido infernal, que ouço, mas não consigo calar, porque não consigo acordar. Recordo o acidente, a sala de operações e depois este apartamento. Este apartamento onde tenho estado sozinho nos últimos anos. Tudo volta e com isso o pânico. Não aguento mais. Não consigo ter mais um dia em que nada acontece, em que eu não durmo nos sonhos e não desperto na vida real. Bato com força no espelho. Grito, tentando chamar à atenção daquele corpo no hospital.

«ACORDA!!!»

Nada acontece. Mais uma vez, nada acontece.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Cláudio André Redondo

Apaixonado por livros, música, cinema e videojogos, foi-se aventurando por essas áreas à descoberta de novos mundos e formas de se exprimir. Sente no terror o conforto daquela mantinha que nos aquece nos dias frios, e começou, recentemente, a tirar contos do género da gaveta. Espera brevemente tirar outras histórias, filmes, videojogos e músicas. Resta saber que figuras e lugares sombrios o acompanharão.