Sono

de António Garcês

 

Após umas merecidas férias, o Dr. Mendes, psiquiatra especializado no tratamento de distúrbios do sono, voltava ansioso ao consultório.

Enquanto se preparava para iniciar um dia de trabalho, começou por abrir a caixa de e-mail. Para seu espanto, havia uma enxurrada de mensagens não lidas, todas com a palavra «AJUDA» no assunto. O coração do doutor acelerou. Um sentimento de urgência tomou conta dele.

Para entender a situação, começou a percorrer os e-mails, todos do mesmo remetente, em busca de um motivo para tanta insistência. Chegou assim ao mais recente, enviado no dia anterior.

 

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Para: luis.mendes@hmail.com

Assunto: AJUDA

Caro Doutor,

Não sei se tem lido as minhas mensagens, mas sinto-me a desaparecer.

Acordo mais uma vez exausto, cansado e desprovido de uma noite de descanso. Aconteceu outra vez e os pesadelos estão mais fortes e implacáveis. Perseguem-me com as mesmas situações horrorosas, de novo e de novo. 

Fielmente, tomo os medicamentos, à espera de alívio, mas não há trégua. Em desespero, aumentei o número de comprimidos. Troco também de lençóis e de pijama todos os dias na esperança de sacudir o medo persistente. Deixo luzes ligadas e as portas abertas, para tentar afastar o escuro que invade o quarto. 

O simples pensamento de dormir já não me alivia. Faço os possíveis para não adormecer. Passo noitadas a trabalhar, à espera de que estas se sobreponham à vontade de descansar. Mas perco sempre. E a noite de ontem foi a pior.

Acordei, deitado de costas na cama, com uma sinfonia inquietante de diferentes tons, cada vez mais alta, a invadir-me os ouvidos. O quarto mantinha-se envolvido em escuridão, sem brilho vindo da rua. Esforcei-me para me lembrar de quando teria ido para a cama, mas os meus pensamentos permaneciam nublados, elusivos. Tentei virar a cara para ver as horas, mas uma força imobilizou-me. Tinha uma sensação de mil agulhas a picarem-me o corpo. O quarto, entretanto, parecia ter encolhido e estar mais frio. Vozes incompreensíveis aproximavam-se de fora. Afundei-me nos lençóis à medida que a minha respiração se tornava pesada, com o coração a bater ferozmente ao perceber que não tinha controlo da situação. 

Um enorme peso acomodou-se no meu peito, como se alguém estivesse sentado em cima dele. Senti uma presença no quarto, uma entidade. Avistei então uma sombra, vestida inteiramente de preto. Usava um chapéu e um véu da mesma cor, que lhe caía por cima da cabeça. Por detrás do véu, fixavam-me duas aterrorizantes esferas vermelhas. 

Uma onda de terror passou por mim e paralisou-me as cordas vocais. Lutei com toda a força para gritar, mas da minha garganta escapou apenas um choramingar leve e triste, para alimentar ainda mais o meu pânico. 

Por favor, Doutor. Temo não sobreviver outra noite. Acordei encharcado em suor, sem me conseguir manter direito na cama. Ainda tremo ao escrever esta mensagem, quase em lágrimas ao pensar se este pesadelo não terá fim.

Por favor, ajude-me.

António 

 

*****

 

O Dr. Mendes encontrava-se em choque com o que acabara de ler. O desespero nas palavras de António ecoava-lhe na mente. Tentou ligar-lhe, sem sucesso. O e-mail e a mensagem de texto que enviou em seguida não tiveram resposta até ao fim do expediente.

Com o Sol a pôr-se, o doutor voltou a casa. Deitou-se, mais cansado do que deveria estar, tentando pôr de lado a preocupação com o paciente. A transição para o sono foi suave, com sombras a dançarem à volta dele, até subitamente se encontrar numa escuridão opressiva e não familiar, com um ambiente pesado, sufocante.

Uma figura à distância emergia. O doutor reconheceu a presença. Era semelhante à descrição feita pelo seu paciente — a sombra. Estava de costas voltadas, por isso aproximou-se dela com cuidado, sentido o peso do pesadelo a pressionar-se contra ele. Podia sentir a angústia que emanava da figura, que agora tremia e chorava intensamente. 

Combatendo o medo, o doutor esticou o braço para lhe tocar, fazendo com que a sombra se virasse e revelasse o rosto de António. Este gritava por ajuda, mas a sua voz era engolida pela atmosfera, enquanto a cara se transformava em algo maléfico, terrível, que faria qualquer adulto ou criança molhar a cama. Os olhos, vermelhos e sangrentos, brilhavam de forma intensa. A boca abria em dimensões desproporcionais, sem língua e sem dentes. O pior dos pesadelos. 

Sem aviso, o sonho partiu-se, como vidro a estilhaçar. O doutor acordou sobressaltado, coberto de transpiração. O coração saía-lhe do peito. 

Com a escuridão ainda a ocupar-lhe a mente, e apesar de assustado com aquela experiência demasiado real, começou a racionalizar o fenómeno, supondo que as mensagens inquietantes que recebera teriam influenciado os seus sonhos. Decidiu, assim, voltar ao computador e ler todos os e-mails que António lhe enviara, para os analisar em pormenor. Tudo o que descobriu, porém, foi que todas as mensagens tinham desaparecido, tanto as recebidas como as enviadas, como se nunca tivessem existido.

SOBRE O AUTOR

António Garcês

António Garcês nasceu em Setúbal, em 1996, e é licenciado em Engenharia Mecânica. Gosta de livros e filmes de todos os géneros, mas têm um carinho especial por terror, tendo sido uma cassete com o filme Alien a desencadear o gosto pelo género. Mais tarde, vieram os romances de Stephen King, que abriram portas para o mundo literário. Até hoje, já leu vários autores do género, mas está sempre à procura da próxima história. Estreando-se agora pelo mundo da escrita, só fica a questão de qual será o seu próximo conto.