Souvenir

de Nuno Gonçalves

 

Sabem quão difícil é arrancar um dente? Nos filmes, parece fácil. Nos filmes, parece tudo fácil. Arrancar dentes, olhos, dedos, membros, como se as pessoas fossem de desencaixar. Se querem mesmo desmanchar uma pessoa, matem-lhes um filho, ou o marido, ou a esposa, ou o cão. Mas eu nem queria desmanchá-lo, só queria um dente. E tinha um bom alicate. Do meu avô. O meu avô teria conseguido arrancar-lhe o dente à primeira. Foi o meu avô que mo apresentou. Disse-me, a mostrar-me uma fotografia: sabes quem é este? É o Johnny Parreira. Um dia, vai ser o maior cantor português. O maior músico! E foi verdade. Ninguém cantava como ele. Ainda ninguém canta, nem mesmo ele próprio. Talvez volte a cantar, se os médicos fizerem um bom trabalho. Comigo, nunca fizeram. Tantos médicos, psicólogos, psiquiatras, professores, terapeutas, curandeiros. Exceto um. Esse foi útil para mim, e eu para ele. A morte é útil. Não há nada mais útil do que a morte. Talvez um alicate. Um bom alicate como o do meu avô. Mesmo assim, foi difícil. Ele gritava e não parava sossegado. Como é que uma voz tão bonita é capaz de gritos tão histéricos? Não grites, canta os Jogos de Menino! E ele gritava e chorava. E cheirava a suor e a mijo. Atirei para o chão a cadeira onde o tinha amarrado. Bateu com a cabeça. Já ouviram um osso a estalar? Faz CRAC. Um som horrível. Maravilhoso. Depois, sossegou. Tentei puxar o dente. Eu queria um molar. Um dia, parti um molar a tentar abrir uma amêndoa. Puxei com tanta força, tanta força, que algo estalou. Já ouviram um osso a estalar? CRAC. Cá estava ele, o dente, todo malparido, cheio de sangue e baba e ranho. Acho que lhe rachei a cara. Uma cara tão bonita. Agora, está ali, na televisão, todo enfaixado, feito coitadinho. O meu raptor, diz ele. Raptor?! Admirador, Johnny!, grito para a televisão. Vejam o dente. Trago-o pendurado ao pescoço. Está seco. Já não cheira a nada, não sabe a nada. Tanto trabalho e ficou seco, vazio, morto. Preciso de arranjar outra recordação.

SOBRE O AUTOR

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).