Sufoco
de Sebastião Maia
A velha casa de família, aquela casa onde brincava todos os dias quando era criança, está em ruínas. Não gosto de a ver assim. Lembro-me de quando ela ainda tinha o seu brilho e estava cheia de gente. Agora, ninguém lá vai. Há vinte anos que está vazia. Os móveis continuam no mesmo lugar de sempre, mas cobertos de panos brancos. As tábuas do soalho rangem a cada passo que dou, e, nas paredes, além de muito pó, é possível observar teias de aranha.
A velha casa foi construída e idealizada pelo meu pai, para que, quando ele morresse, eu pudesse viver nela com os meus filhos. Mas eu não tenho filhos. Nem pai. Portanto, limito-me a ir à casa uma vez por semana.
Dirijo-me à sala de estar e olho para uma das paredes, onde se encosta um relógio com um pêndulo. Está parado. Tantas e tantas vezes o escutava nos meus momentos de solidão.
*
Noite. Reina o silêncio na casa. Deito-me no chão da cozinha para tentar adormecer e ouço um som que me é familiar. Aquela música de sempre, com o mesmo ritmo.
O clangor do pêndulo a oscilar provoca-me arrepios no corpo. Algo não bate certo. Deixo o relógio por uns momentos, na sua melancólica cantilena, e inicio uma exploração pela casa, cruzando-me com os velhos retratos de família ainda pendurados na parede e que me fazem estremecer. Reparo na postura dos meus familiares, como se olhassem para mim. Olho para outro retrato, onde me vejo em criança, alegre, a brincar com uma bola de trapos. Já não sou o mesmo.
Nas minhas deambulações, vejo que a porta que dá acesso ao sótão está entreaberta. Aproximo-me dela e abro-a por completo. Vejo as escadas pequenas, as mesmas que subia e descia quando brincava às escondidas com a minha família. Subo-as e dou de caras com o velho sótão. O tapete no soalho está desgastado, e os seus tons azuis tornaram-se acinzentados. Percorro as prateleiras das mobílias que ali se encontram e olho para as lombadas de livros que li na minha juventude: The Shining, O Feiticeiro de Oz, os sete livros d’As Crónicas de Nárnia ou histórias horripilantes de H. P. Lovecraft. Após tantos anos, ainda me chamam para entrar dentro deles. Mas agora não posso ir para a Cidade Esmeralda, nem ver se há uma terra encantada por detrás do armário do meu avô.
«Vamos para a mesa!», gritava o meu pai da sala de estar. «A tua mãe fez aquele guisado de peru que tu gostas. Tem cá um aspecto…!»
E eu pouso o livro, corro todo sorridente escada abaixo, mas, quando entro na sala de estar, não há voz nenhuma, nem pai nenhum. E aquele guisado de peru de que eu tanto gostava não passa de uma memória. Ouço vozes vindas das paredes desta casa, possivelmente dos meus familiares. O som do pêndulo ecoa na minha cabeça, que começa a latejar e faz com que os meus monstros interiores queiram sair. O tempo deles parece ter chegado.
Encaminho-me para o relógio na parede e fecho os olhos. Vem-me o cheiro do guisado às narinas e sorrio. Nesse instante, sinto-me a cair e só vejo olhos à minha volta. Tento gritar, mas não consigo. Desses olhos, caem lágrimas de sangue que os emolduram como os quadros nas paredes, e os meus familiares parecem sair deles. Dançamos todos juntos, eu e a minha família, enquanto os olhos se misturam uns nos outros. Todos os risos, todos os ecos, todos os lamentos e os nossos corpos se fundem no metal do pêndulo do relógio na parede, que continua a manifestar-se, soturnamente, na sua canção.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Sebastião Maia
Sebastião Maia nasceu no Porto, em 1995.
Formou-se como ator no Balleteatro Escola Profissional, licenciou-se em Teatro – Variante Interpretação na ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), onde também fez uma pós-graduação em Dramaturgia e Argumento. Além de dar aulas de teatro, também gosta de escrever coisas em vários cadernos. Coisas essas que talvez cheguem a ver a luz do dia, ou talvez não. É ainda recriador histórico no grupo História Viva.