Taco Afiado

de Patrícia Lameida

 

O meu pai matava galinhas com um taco de golfe afiado. Era um espetáculo caricato ver o homem a correr pelo quintal vedado atrás da galinha escolhida. Erguia o taco em pontaria enquanto estudava o arco que a tacada teria quando acertasse na cabeça do bicho, e não falhava uma. Com a força da paulada, a criatura jazia depois entre as folhagens, inerte. Era nesta fase que o cenário desportivo se tornava colorido, quando o meu pai dava sentido à sua fama de inventor e, com uma machadada certeira, separava a cabeça do corpo galináceo, usando o bordo inferior.

O taco fora uma oferta. Tinha perdido a conta aos quilómetros percorridos entre os relvados — ele, de saco às costas; eu, ainda gaiato, pela borda do campo, atento às bolas. A figura de um caddie deve ser inumana, complementar ao saco que zela e impreterivelmente eficaz. E o meu pai era o melhor. A qualidade do seu trabalho não o absolvia dos destratos que acompanham um desportista em maré de azar. Sofriam os tacos, e o caddie, por arremesso, mas ele, fiel ao seu papel e orgulho, nunca se queixava. E isso fazia dele o melhor.

O momento áureo da oferta aconteceu no último verão em que o acompanhei. Um dos golfistas habituais, que o meu pai acompanhava há uma vida, trouxe três sets de tacos, quando seria comum fazer-se acompanhar por dois. No início da época, abordou o meu pai de forma inédita e, olhando-o nos olhos, pediu-lhe a opinião sobre a qualidade dos tacos que possuía. O meu pai levou a pergunta muito a sério. Avaliou cada peça em detalhe, fez a sua seleção e esperou pelo que se seguiria. Para seu gáudio, o golfista ficou satisfeito e, como agradecimento, ofereceu-lhe o putter (que, sem dúvida, iria deixar na lixeira do hotel antes da partida).

Sendo caddie, o meu pai era também um homem pragmático, e nunca encontrou serventia no jogo em que colaborava, nem nos instrumento de que cuidava. Aquele putter, porém, era mais do que um taco, era um símbolo. Como tal, tinha de ser usado; caso contrário, o seu simbolismo perder-se-ia com o pó que iria acumular. Inventivo como era, achou que o metal seria útil como lâmina, e encetou na obra de transformação. Todos os serões eram passados a tratar aquele taco, que era limpo, afiado e polido, antes de ser arrumado. Era quando discutíamos que a lâmina se tornava mais afiada, e eu temi o taco até o odiar.

Depois, um dia, o meu pai morreu.

Nada de novo, no final. Morreu como morrem todas as criaturas de deus, como uma qualquer galinha em dia de exercício.

 

***

 

Neste buraco em que me deixei ficar a viver, há pouco que se faça e que me pague as contas. Sendo filho de quem fui, lá consegui um lugar de caddie, como foi o meu pai, sem precisar de referências, currículos ou prestação de provas. Foram tantas as horas que passei nas sombras daquele campo que o ofício me está entranhado na pele. Não penso no que tenho de fazer. A seleção de ferros, a prontidão na recolha de bolas e a celeridade atrás do atleta que sirvo saem-me com a naturalidade com que respiro. Fazer-me mudo e invisível é também muito simples, mas é-me impossível fazer-me surdo. E inglês foi língua que aprendi quando interiorizei as regras do jogo.

Não é justo. O jogo. Ou a vida que por ali se vê, na realidade. São velhos os que jogam, e vistosas as garotas que os acompanham. Tudo movido a notas de três dígitos por coisas tão simples como um chá a meio da tarde. Enquanto os auxilio, oiço, e sinto o meu peito encher de raiva. A mesma raiva que me nasceu neste campo, que cresceu com as horas que aqui passei e que libertava frente à tromba do meu velho enquanto ele afiava o taco.

Enche.

Enche.

Enche.

E o velho já cá não está para poder despejar este nojo. E a podridão com que me alimentam os ouvidos infiltra-se-me pelo cérebro.

Há dias assim. Dormir não é hábito que cumpra com uma regularidade comum, e hoje as insónias premiaram-me com uma incaracterística lucidez. Decidi honrar o meu pai e trouxe o putter comigo para o campo. O dia está nebulado, o que deverá tornar o jogo lento. Melhor assim, já que a velocidade não vem no mesmo pacote que a insónia me trouxe.

O jogo começa vagaroso. As meninas de companhia deixam-se ficar por perto. Não está agradável para a piscina, pelo que é fácil usar estes momentos em proveito da bajulação dos gordos com que se deitam. Falam como pegas, incessantes na mediocridade dos assuntos que as conectam, e os velhos ainda arrotam a cerveja após cada tacada de ressaca.

A lucidez que trouxe comigo mostra-me as corridas do meu pai pelo galinheiro em câmara lenta. Para os primeiros dois, nem preciso correr, basta rodar o taco com a força certa. As garinas gritam, mas não se mexem, pelo que derrubo as três com tacadas limpas, e ainda tenho força para fazer um sprint atrás do último, que fugira, trôpego enquanto grunhia.

Foram mais difíceis de decepar do que as galinhas, mas o fio estava tão afiado como o deixei depois da morte do velho. Limpei o velho putter, verifiquei o fio (precisava de um jeitinho) e puxei-lhe o lustro. Num rompante, senti o peso do silêncio enevoado que me rodeava, e só tive vontade de dormir. Achei que, por hoje, bastava.

SOBRE A AUTORA

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.