Um, Dois, Três

de Ana Rita Garcia

 

Um, dois, três. Lá ia ela, contando as pedrinhas, uma de cada vez. Um, dois, três. Rolavam, redondas, polidas, pelos dedos finos, no fundo do casaco pesado que a cobria do frio e dos olhos dos outros. Um, dois, três. Rolava. Contava a cada passo que dava. Um, dois, três. Um mantra. Um entretém. Um escape. Mãos nos bolsos e olhos no chão. Para não ver, para não falar, para não se assustar: um, dois, três. 

― Bom dia. 

Ela ouvia, mas não respondia. Não por despeito, apenas por receio. «Não fales com estranhos», ensinaram-lhe quando era pequena, e ela aprendeu a obedecer. Talvez quem lhe falasse fosse um estranho, talvez não. Talvez fosse quem ela queria evitar. Ficava difícil reconhecer as vozes quando apenas conhecia os pés.

― Bom dia, menina. Não me ouviu?

Um, dois, três. Contava as pedrinhas e seguia calada. Apressava-se, fazendo-se de surda. Quem lhe dera não precisar de contar. Seria uma pessoa normal, sem esquisitice, sem olhares julgadores de quem nunca vira tal mania. E, ainda assim, já muito melhorara.

Certo dia, em aflição, fechara os olhos e recusara voltar a abri-los. Correra médicos da vista, da cabeça, de tudo e mais alguma coisa, mas quem a ajudara fora aquela velha torta e enrugada que cheirava a gato, que se arrastava de xaile pelos ombros e lenço negro na cabeça. Nesse dia, cega voluntária, saíra de casa desvairada. Sem norte, aos tropeções, chorando, desesperando, pensando-se acabada. Exausta, esbarrara com os joelhos num banco de pedra. Sentara-se. Aguardara que a morte chegasse. Porém, quem se aproximara dela, fora a velha. Primeiro, depositara-lhe na mão três esferas frias. Depois, chegara-se a um ouvido, e a rapariga sentira-lhe os pêlos ásperos do queixo a fazerem-lhe cócegas. 

― Toma estas pedrinhas e conta-as. Um, dois, três. Não olhes em frente, olha para o chão de onde elas vieram. Por cada aflição, por cada temor: um, dois, três.

Parecera à rapariga que a velha sorrira antes seguir caminho. Não tivera coragem para se mexer. Esperara. Esperara. E depois esperara mais um pouco, levantando-se quando já não aguentava de fome, de sede e curiosidade. 

Contara pela primeira vez: um, dois, três. Abrira os olhos devagarinho. Não olhara em frente, só para o chão, como a velha lhe indicara. Um, dois, três. Só assim conseguira regressar a casa pelo próprio pé. Um, dois, três. Olhava para o chão, mas ainda os podia ver na periferia — os outros, os que certo dia haviam aparecido, teimando em persegui-la, e por quem ela decidira abandonar a visão. Arrastavam-se, ensanguentados, desfigurados, gemendo, arreganhando os dentes. Uns falavam com ela, outros injuriavam-na. Outros tentavam seduzi-la para que os olhasse, para que os acompanhasse. Contara: um, dois, três. E eles desapareceram. Esfumaram-se. Dissolveram-se nas sombras. Sorrira, aliviada. Dera mais um passo, depois mais outro, e viu-os voltar. Nojentos, fedendo, rosnando. 

Um, dois, três. Contara e voltara a estar sozinha. Voltara à paz, livre daquelas criaturas que a queriam sufocar. Pelo menos, por agora. Pelo menos, por mais um pouco. Pelo menos, até que um dia se fartasse de contar. Um, dois, três.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Ana Rita Garcia

Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Foi a ver o mar, na margem sul do Tejo, que cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. A economia nacional obrigou-a, em 2013, a procurar outro país para poder exercer a sua profissão. Trabalhou dez anos como arquiteta em Paris, antes de se mudar para terras escocesas e, no meio destas andanças, compreendeu que, ao ler e escrever na língua de Camões, se sente mais perto de Portugal.