Um Espelho para os Fantasmas

De David Soares

 

Na rua onde o Peregrino se encontra são visíveis resquícios de antigas configurações tão incrustados de contemporaneidade que passam por paisagem em vez de se singularizarem como os autóctones que são: mosteiros de madeira e prego, por vezes de telhas e tijolos, aqui e ali relicários de azulejaria reunidos de cacos e macilentas jóias de cimento.

O antigo bairro é um santuário de edifícios e engenhos que envolve o Peregrino com uma confusa oração costurada de tosses, relatos de futebol, ruído de talheres a baterem em pratos e vozes simultaneamente inescrutáveis e inteligíveis. A luz do meio-dia precipita-se no pavimento como uma aguada que uniformiza o manto cromático do lugar para os valores mais pardacentos do espectro e regula as atitudes dos pouquíssimos moradores para uma análoga modorra alvacenta. E aí, assemelhando-se a suturas em carne recentemente autopsiada, pode ver-se contra o céu cinzento a malha negra de guindastes e gruas: entretecimentos de metal e cabos; quase adventícios saurópodes que assomam sobre a floresta de ruínas.

Adquirindo uma quasi-fosforescência sob a luz miserável, a tela que cobre os andaimes do edifício em reconstrução diante do qual parou o Peregrino emite uma ambiência iconostática concernente à deferência: que santos secretos se ocultarão por trás do poliéster e do pó — que fantasmas? O ainda vertebrado, ruinoforme edifício em nada se assemelha à fosca impressão gravada na memória do Peregrino. A ferrugem é um organismo e reactivar a memória é um compromisso dificílimo de manter quando o riso dos obreiros em pausa para almoço se esganiça pelas ilhós. Dificílimo quando se contempla a imagem da própria dissolução.

Pois o Peregrino — que é o fantasma desse edifício morto — não se reconhece na superficial carcaça que já foi o seu corpo de três pisos e na qual nidifica um vápido complexo de apartamentos. Onde, pensa ele, onde ficava o pátio em que o avô enterrou o cão da neta, atropelado ali ao pé depois de fugir? Aqui, lembra-se, ficavam os degraus de pedra que subiam pelas traseiras da igreja e para onde os filhos dos vizinhos iam fumar e namorar às escondidas. (O vidro da sacristia que partiram há anos, com uma pedra atirada por uma fisga, nunca fora substituído). O fantasma do velho edifício pressentia o eco de vidas inteiras que não contaram para absolutamente nada, nomes esquecidos, esboroados como o entulho depositado naquela manhã no contentor: onde estão os fósseis dessas vidas abreviadas? Em que superfície mágica poderiam os homens ter gravado as escalavradas silhuetas enquanto saíam de manhã para o trabalho e regressavam ao final da tarde, tresandando a suor e a descontentamento? Onde estava o Livro da Vida onde, pelo menos, poderiam ter inscrito os nomes? As paredes do prédio foram abaixo depois da morte do último inquilino: nenhuma recordação, nenhum salvo-conduto salvará essas patéticas existências do purgatorial rio do esquecimento, de cujas margens nem sequer o indigente espírito do edifício, desorientado e ébrio de olvido, é capaz de avistá-las. Só lhe é possível ouvir o vento a esmurrar, pusilânime, a mortalha de telas e tubos. Só lhe é possível ouvir o retouçar insignificante — do mar?…

Para lá do horroroso casulo de tapume onde os trabalhadores deixam as palmas pintadas nos varões, como se estes fossem verticais e deformadas superfícies paleolíticas, tentaculares filamentos de luz e de sal desenrolam-se sobre a estrutura à guisa de um sudário de cirro: anunciam o mar além da rua, uma inesperada extensão azul, suave como flanela. O Peregrino, fantasma entorpecido do prédio derrubado, eleva o olhar por cima do novo telhado em construção e vê uma paisagem que lhe é familiar: o oceano adormecido, acolhido por um nimbo criselefantino de areia dourada e pedra branca, moldura polaroidiana de uma imagem salpicada de encandeantes borrões de luz — gotas vertidas pelo Sol derretendo em tardes de fim de Verão, dissolvendo-se na água como mel em chá. Um arrepio infiltra-se entre os órgãos transparentes do Peregrino, uma espécie de poema-gemido, um memorial íntimo. Perplexo, o fantasma do edifício observa-se reflectido no pano de água e reconhece TUDO.

Desenhadas pelicularmente na superfície, distorcidas de modo ameno pelo vento, lá estavam as velhas memórias insubmergíveis: os antigos moradores às janelas, olhando para o horizonte, ora jovens, ora idosos, felizes e angustiados, aniversariantes e enlutados; uma criança morta velada pela família; um velho sentado numa cadeira fazendo as palavras-cruzadas no jornal; animais de estimação nascendo em leitos de lã e aparas; vapor de água bolçado por uma panela ao lume; uma vela lacrimejando cera pela madrugada adentro; crueldades à luz do dia e carícias no escuro — caleidoscópicos fragmentos de pequenas histórias, translúcidos e coruscantes como alforrecas. E albergando o Todo, a imagem do edifício vivo — reflectido no mar como num espelho. Um espelho inquebrável.

Odorificado como uma relíquia recém-sacralizada, o fantasma do edifício deixou-se finalmente absorver pelo petricor embebido entre as pedras da calçada — sentiu-se feliz, antes de perder substância. Nesse vacuísmo, não ouviu os trabalhadores a regressarem calmamente à obra depois da refeição. Nunca soube que eles, nessa tarde, sonharam acordados com um velho a enterrar um cão e ouviram risos oriundos de inexistentes degraus de pedra. Sombras produzidas por janelas extintas. Chaves retrucando em portas invisíveis. Imitações de vidas passadas, tão caprichosas e vestigiais como folhas rodopiadas pelo vento, como poeira atraída por electricidade estática. Simulacros animados pela presença do fantasma e desfeitos uma vez enfraquecida a sua imanência.

As pessoas morrem. As casas morrem. A mesma putrefacção as espera. A mesma fatalidade. E os fantasmas também morrem. Algures, no entanto, existirá sempre um espelho para que possam dizer adeus a si próprios antes de se desvanecerem.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

David Soares

David Soares (Lisboa, 1976). Escritor, historiador. Autor de quatro romances, quatro livros de contos, dez livros de banda desenhada, dois livros de ensaios e um livro para crianças, nos quais o horror, o fantástico e o histórico se entrecruzam. A par da escrita de novas ficções e diversos artigos, está a escrever a sua tese de Doutoramento sobre deformidades físicas e morais na Europa da Época Moderna (sobre bobos da corte, anões de corte e hereges, entre outros atores sociais, marginais e liminais).