Um Prato Frio

de Nuno Gonçalves

 

 

Criança, 8 anos, sexo feminino.

Dizem que há cinco fases no luto. Quanto a mim, só conheço uma: raiva.

Causa de morte: traumatismo craniano com hemorragia subdural.

No início, tentei que as palavras se mantivessem assim, apenas palavras, quietas nas páginas. Tentei calar as imagens que teimavam em formar-se.

Hematomas e escoriações cervicais, sugestivas de estrangulamento manual e com…

Depois, desisti e abracei-as, para que alimentassem a raiva. Deixei-as surgir, ganhar nitidez e cor. Deixei-as ganhar cheiro, envolvidas por sons. Os gritos dela, os grunhidos dele.

Hematomas e lacerações na região vulvar e perianal, sugestivas de…

Tão nítidas, tão vívidas que me provocam náuseas. Vómitos, até. A minha filha a ser… e depois… e por fim…

Hoje, fujo das palavras.

Ele já não pode fugir. Tenho-o aqui, atado de pés e mãos, como ela também esteve. O seu cheiro, a suor e urina, dá volume às imagens que me assombravam. Ele fita-me por entre o sangue e o ranho, num misto de terror e incompreensão. Até eu lhe mostrar a foto da minha menina.

— Perdão… Eu lamento… Por favor…

O machado assenta-me melhor do que o perdão. Não tenho muita força. Preciso de duas ou três investidas para lhe conseguir arrancar uma orelha. Os gritos dele ecoam nas paredes da cave vazia e são-me devolvidos como gemidos de crianças. Da minha filha e de tantas outras. Quantas? Quando para de gritar, implora.

— Perdão… mil perdões… minha senhora, por favor…

Prossigo, aos poucos. Até ele só conseguir sussurrar:

— Mate-me… Por favor… De uma só vez, mate-me…

Quando planeei isto e me imaginei nesta posição, estava convencida de que pararia quando ele implorasse pela morte, convencida de que cederia ao pedido da derradeira misericórdia. Agora, percebo que não é suficiente. Há ainda tanta carne para trinchar.

Temos tempo.

 

SOBRE O AUTOR

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).