Uma Estranha à Entrada
de Marta Nazaré
Quando chegámos, a porta estava fechada, e ouviam-se os mexericos das Criaturas da Noite, a escarnecer da grande desgraça que me ajudaram a causar a mim mesma. Estavam ali para me exibirem outros medos e lançarem a chama de novos terrores. A Menina Que Fui deixou escapar um murmúrio e apertou-me ainda mais a mão. Continuava num pranto silencioso pelos sonhos de papel que ateámos sem querer. Puxei-a para perto de mim e tentei reconfortá-la. Se ela se acalmasse, talvez conseguíssemos entrar juntas. Não queria deixá-la para trás, mas também não sabia se a podia levar comigo. Sentia o corpo a afogar-se numa incerteza gélida de palavras por dizer e de decisões por tomar.
Naquela espera fragmentada e vazia, onde os demónios interiores dançavam valsas de delírio febril, a figura encapuzada resolveu aproximar-se. Desculpei-me com o deserto de oportunidades, com as dúvidas infinitas, tentando convencê-la a deixar-me entrar com a Menina pela mão, mas nem assim o vulto imponente cessou de me atormentar com o que eu tinha feito. Nem assim me perdoou a precipitação que condenara inadvertidamente a Menina ao abismo.
Dentro de mim, travou-se uma luta desigual entre um «eu dividido», saudosista de uma harmonia impossível, e um facilitador intransigente, senhor resoluto do destino das almas que, por não terem evoluído em vida, não conseguiam avançar na morte.
Uma por uma, a criatura alada desfez todas as amarras de ilusões que me prendiam ao chão. E foi na queimadura fria da derrota que, sem quaisquer vínculos, soltei a Menina. Sacrifiquei-a às Criaturas da Noite. Entreguei-a irremediavelmente ao seu próprio pesadelo.
Enquanto nada mais restava aos meus olhos a não ser adaptarem-se à solidão, a porta abriu-se. As Criaturas da Noite silenciaram-se e recolheram-se. Tinham outros terrores para despertar e novas almas a quem dar descaminho.
Antes de finalmente me deixar entrar, com o grande Tomo das Almas aberto e a aguardar registo no vazio, o Anjo Negro quis saber quem eu era. Assegurei-lhe que continuava a ser quem sempre fui, uma estranha em vida como seria na morte.
SOBRE A AUTORA
Marta Nazaré
Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.
Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.
Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o error infantojuvenil.