Uriel

de António Bizarro

 

Certa noite, fui acordado por um bater de asas que me resgatou do meu pesadelo recorrente. A escuridão do meu quarto, porém, não me permitiu identificar o ser alado que, em boa hora, me despertara. Daí em diante, o som de asas a bater vinha todas as noites em meu auxílio, até que o pesadelo que me acompanhava desde jovem me abandonou. Pela primeira vez em muito tempo, conseguia dormir sete horas seguidas e acordar sem estar cansado.

Um dia, vi-o, enquanto esperava que o semáforo mudasse de vermelho para verde. Uma figura humanóide, vestida de preto dos pés à cabeça, com um enorme par de asas negras nas costas. O sinal mudou para verde, mas a figura esticou a mão, ordenando-me que ficasse parado. Vindo do lado direito, um automóvel atravessou o sinal vermelho a grande velocidade e abalroou um autocarro. Não fora o anjo, teria sido o meu carro a sofrer o impacto brutal que vitimou o condutor e fez um sem-número de feridos entre os passageiros do autocarro.

Na terça-feira seguinte, saí de casa para o meu jogging nocturno no parque da cidade. A meio do meu percurso habitual, vi o anjo com as suas asas abertas a impedir-me a passagem. Avançou para mim de dedo em riste, apontando o sentido contrário. Obedeci sem hesitar. Na quarta, os principais programas informativos abriram com a notícia de que, na noite anterior, um jovem tinha sido assassinado no parque. Fora esfaqueado múltiplas vezes.

Assim, quando, na manhã de domingo, o anjo me acordou por volta das seis da manhã e me deu as chaves do carro para a mão, vesti-me de imediato e pus-me ao volante. O anjo negro ocupou o banco traseiro e instou-me a arrancar.

Conduzi durante duas horas, com o anjo a menear a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, indicando-me o caminho. Fomos sempre pela auto-estrada, sem que eu fizesse a menor ideia de qual seria o destino. Apenas quando o anjo me mandou avançar por uma velha estrada secundária é que me apercebi para onde nos dirigíamos: a minha aldeia-natal, de onde saíra vinte anos antes, assim que atingira a maioridade.

Parámos a cem metros da igreja onde fora acólito. As gentes da aldeia, nos seus trajes domingueiros, encaminhavam-se, em passo lento, para o interior da nave. O anjo mandou-me segui-las. Entrei e sentei-me no primeiro banco à direita.

À medida que o Sr. Padre celebrava a missa, comecei a lembrar-me dos nomes dos objectos litúrgicos que há muito havia esquecido: patena, galhetas, píxide, alfaias, turíbulo. Após os fiéis comungarem o pão e o vinho consagrados, e o Ite, missa est ter sido proclamado, a igreja esvaziou-se. Apenas eu permaneci sentado. O anjo pairava sobre o altar, imitando Cristo na cruz, com um sorriso sarcástico a deformar-lhe a cara.

O Sr. Padre, já sem os paramentos, saiu da sacristia e examinou o púlpito e o altar. Pareceu satisfeito com a inspecção. Ao olhar para o fundo da igreja, reparou na minha presença. Aproximou-se de mim em silêncio, dando passadas curtas, e não tardou a que eu visse nos seus olhos um clarão de reconhecimento.

— Uriel…? — perguntou a medo.

O anjo materializou-se a seu lado e começou a cantar-lhe uma canção ao ouvido. E ao mesmo tempo, também eu cantava.

O teu deus não é nada / o teu deus não está em lado nenhum / o teu deus não estava lá para me proteger — cantámos a uma só voz.

— Uriel, perdoa-me… por favor… — suplicou o Sr. Padre.

Continuámos a cantar em uníssono, eu e o anjo.

O teu deus é um ídolo caído / o teu deus não sabe nada / o teu deus não estava lá para me confortar.

— Por favor, Uriel…

Saí da igreja sozinho. Ao chegar junto do automóvel, ouvi o repicar dos sinos. No exterior do campanário, o Sr. Padre baloiçava de boca aberta e língua de fora, de olhos esbugalhados e virilhas ensanguentadas, com a corda dos sinos enrolada à volta do pescoço. Através dos vitrais, era possível vislumbrar as chamas, cada vez maiores, a engolirem a igreja numa voracidade demoníaca.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE O AUTOR

António Bizarro

António Bizarro é um escritor e músico nascido em 1978, em São Paulo, Brasil, e vive no Barreiro. Entre 2006 e 2021, editou cinco livros de contos, uma noveleta em inglês e um livro de poesia. Em paralelo, lançou seis álbuns de música eletrónica (industrial/ambiental), tendo a sua música sido usada em podcasts, curtas-metragens, documentários e jogos de vídeo. As suas principais influências são os Alice in Chains, o J.G. Ballard e o David Cronenberg.

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