Variatio In Urbana Fabula
de António Bizarro
A mulher regressa a casa de automóvel, numa noite chuvosa, depois de um encontro que, de romântico, nada tivera. A meio da estrada que liga a metrópole à pequena localidade onde reside há pouco mais de um ano, o painel de bordo do seu SUV alerta-a para a falta de combustível.
Divisando por entre a chuva uma pequena estação de serviço, pela qual passara tantas vezes sem nunca lá ter atestado o depósito, insta o veículo a aguentar-se com palavras de encorajamento. A estação de serviço está às escuras, não contando com o foco de luz sobre o posto de abastecimento.
De cartão de crédito na mão, buzina com insistência, entre o desespero e a irritação. O rosto barbudo de um homem, emoldurado por uma farta cabeleira, avoluma-se junto ao vidro, fazendo com que a mulher solte um grito agudo, pondo a mão sobre o coração galopante.
— É para encher — diz ao recompor-se, abrindo uma fresta da janela, o suficiente para o gasolineiro poder ouvi-la e receber o cartão de crédito.
O homem enfia a mangueira no bocal do depósito, observando com interesse exagerado o interior do SUV, e trota até à pequena estação de serviço, regressando logo depois.
— Há um problema com o seu cartão! — grita ele, fazendo sinal para que ela o acompanhe até ao escritório. — Tenho o banco ao telefone, precisam de falar consigo.
Contrafeita, ela segue-o até ao edifício pouco iluminado, onde o homem aponta para o telefone. No entanto, assim que pega no auscultador, apercebe-se de que não está ninguém no outro lado da linha. O gasolineiro tranca a porta, dando duas voltas à chave. Avança para ela de olhar alucinado, os cabelos molhados colando-se-lhe à testa.
Sem hesitar, a mulher agarra no telefone com as duas mãos e atinge o homem na cara. Saltando por cima dele, atira uma cadeira pela montra de vidro e tenta a fuga. Quando apenas lhe falta alçar a perna direita para se livrar daquele homem asqueroso, sente uma mão prender-lhe o tornozelo. Com um derradeiro esforço, puxa a perna com força e liberta-se.
Corre, mete-se no carro, roda a chave na ignição e arranca, sem se preocupar com a mangueira ainda presa ao depósito de combustível. Poucos metros à frente, antes de o seu SUV pisar a estrada, por entre o cair da chuva e o barulho do motor, a mulher ouve o gasolineiro gritar:
— ESTÁ UM HOMEM ESCONDIDO NO SEU BANCO DE TRÁS!
Ela trava a fundo, sem ter a certeza de ter ouvido bem. Sai do carro, como se impulsionada por uma mola, e pede ao homem para repetir-se.
— Está um homem… escondido… no seu banco de trás — diz ele de novo, ofegante.
A mulher caminha na direcção dele, com a mão direita enfiada no bolso do casaco, e declara, friamente:
— Eu sei.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
António Bizarro
António Bizarro é um escritor e músico nascido em 1978, em São Paulo, Brasil, e vive no Barreiro. Entre 2006 e 2021, editou cinco livros de contos, uma noveleta em inglês e um livro de poesia. Em paralelo, lançou seis álbuns de música eletrónica (industrial/ambiental), tendo a sua música sido usada em podcasts, curtas-metragens, documentários e jogos de vídeo. As suas principais influências são os Alice in Chains, o J.G. Ballard e o David Cronenberg.
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