Verão Quente

de Vanessa Barroca dos Reis

 

O medo mudara-se para a nossa pequena cidade.

As fotos no jornal puseram toda a gente a falar. Três vítimas em seis semanas, a mais recente com 15 anos, deixada para se esvair em sangue como as outras.

E o calor era infernal. À noite, ninguém saía ou deixava as janelas abertas. Passeios tardios eram feitos em passo apressado com trela curta, seguindo os postes de iluminação.

Eu tinha saído muito depois da hora, para acabar um inventário que se arrastava. Dirigi-me à paragem, com um abre-cartas afiado no bolso, já o autocarro abrandava, os faróis alongando as sombras à sua passagem.

Subi ligeira, observando pelo canto do olho os outros passageiros. Um rapaz imerso no seu mundinho digital. Uma mulher de meia-idade, de olhar perdido no escuro exterior. Um velho de olhar de coruja, a tirar-me as medidas.

Dei-lhe um sorriso pequeno. Ele retribuiu com outro, maior.

Sentei-me junto da próxima vítima.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Vanessa Barroca dos Reis

Nascida em Lisboa, cresceu na Amadora, imersa em livros, videojogos, música e cinema. Na adolescência, começou por escrever contos de terror, de mistério e poemas. Alistou-se aos 18 anos na Força Aérea, onde trabalhou uma década. É licenciada em Direito (UAL), e tem uma pós-graduação em Edição (UCP). Mantém os blogues Bué de Livros e Bué de Fitas — na blogosfera, assina como Barroca.
Integra várias antologias, entre as quais Sangue Novo (2021) e Sangue (2022), ambas vencedoras do Grande Prémio Adamastor de Literatura Fantástica Portuguesa. Vive na região da Alsácia desde 2015, onde trabalha na área dos Direitos Humanos.