Vizinhos

de Sandra Henriques

 

Depois de uma semana infernal de reuniões que podiam ter sido e-mails, só queria chegar a casa, atirar com os sapatos para um canto qualquer e refastelar-me no sofá com um copo de vinho (ou dois, ou quatro). Foi com apreensão que me apercebi de que a porta de casa não estava trancada. Garantia sempre que dava as três voltas à chave antes de sair para estas viagens de trabalho.

Entrei e deixei-me ficar junto à porta a tentar perceber, no escuro, se estava algo fora do lugar. Tinha medo de acender a luz e confirmar que a casa estava remexida.

Sustive a respiração.

Carreguei no interruptor à minha direita.

A luz iluminou a sala.

Confirmei com alívio que ali tudo estava no sítio. Agarrei no guarda-chuva que estava no bengaleiro e, com ele em riste, confirmei no quarto, na casa-de-banho e na cozinha que tudo estava na mesma e que não havia intrusos escondidos no armário, ou debaixo da cama, ou atrás dos cortinados. Respirei fundo e preparava-me para dar continuidade aos meus planos para essa noite quando um leve cheiro de detergente me fez regressar, apressada, à cozinha.

A esfregona e o balde estavam desarrumados, o frigorifico estava desligado e havia um bilhete colado na porta. Numa letra extraordinariamente redonda, como ela, a minha vizinha do lado, sempre desocupada e prestável e a quem tinha dado uma cópia da minha chave de casa, explicava-me a razão daquele desalinho:

 

Houve um corte de energia no prédio durante dois dias. Como vi que estava fora e não sabia como contactá-la, tomei a liberdade de cá vir quando me apercebi de que vinha um cheiro nauseabundo do seu apartamento. Acho que o frigorífico avariou de vez, mas trouxe o pouco que ainda estava em condições no congelador cá para casa. Salvei-lhe um saquinho de frango, outro de bifes da vazia e um que diz «Aníbal». Calculo que seja carne de porco, já que decidiu pôr na etiqueta o nome do vizinho nojento do 2.º andar. Achei tão engraçado! Bata-me à porta quando voltar.

 

Vizinha Adelaide

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

 

SOBRE A AUTORA

Sandra Henriques

Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.