Voluntariado

de Sandra Henriques

 

Com a máscara no queixo e desnorteada, uma mulher curvada e de olhos baços parou à minha frente de boca aberta sem falar. Apenas um gemido baixinho se soltava da garganta. Tremia. As mãos enrugadas, embrulhadas uma na outra, procuravam o conforto do calor que não iria voltar. Confusa e perdida, afastou-se antes que eu pudesse agarrar-lhe no braço.

Mas orientá-los não era, de facto, a minha função.

— Olhe, desculpe!

Uma loura oxigenada gritou-me ao ouvido e olhei-a com a expressão menos carrancuda que consegui, tendo em conta as circunstâncias. Afinal, estávamos todos ali para o mesmo.

— Esta fila é para quê?

— Para dar entrada.

A loura bufou e encolheu os ombros, certamente insatisfeita com a resposta, e afastou-se a olhar de soslaio para as dezenas de pessoas acumulando-se na fila que serpenteava até perder de vista. Estava a arranjar maneira de furar, eu sabia. Devia ter-lhe dito que tinha de ter ido primeiro à outra sala onde estavam a dar as senhas; não valia a pena tentar passar à frente dos outros. Mas essa não era, de facto, a minha função.

De repente e sem que eu fizesse sinal, o homem e a mulher à minha frente avançaram, pondo em perigo todos os protocolos de distanciamento entre utentes e funcionários impostos pela Organização.

— Sabe se é Inverno? — perguntou-me ele com voz trémula enquanto me agarrava na mão.

— Não sei — respondi-lhe secamente enquanto libertava a minha mão do aperto peganhento e suado da dele.

— Você também não sabe nada!

— Exacto. Saber coisas não é a minha função!

— Então qual é?! — gritou ele, a um palmo do meu nariz.

Respirei fundo. Limpei os perdigotos da cara com as costas da mão. Agarrei-o pelo queixo e berrei-lhe:

— A minha função é dizer que tem de esperar até que a Organização me autorize a deixá-lo entrar!

Atrás dele, a mulher estremeceu e puxou-o de volta para o seu lugar na fila.

Se te voluntariares, sais mais cedo do Purgatório, disseram-me eles. O trabalho não custa nada, asseguraram-me. Precisamos de pessoas como tu na Organização, convenceram-me com falinhas mansas.

Puta que pariu!

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Sandra Henriques

Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.