Nachtgestalten

de António Bizarro

 

Caminhas pelas ruas desertas de Saint Paul, vinda da estação dos comboios, sozinha, às tantas da noite. Diriges-te para casa e tens frio, muito frio. Avanças por entre as sombras e o nevoeiro no teu passo inseguro, ansiosa por te meteres na cama para uma boa noite de sono. De súbito, outros passos vêm juntar-se aos teus, ecoando de forma sinistra no silêncio da rua órfã de gente. Voltas-te para trás, mas não vês nada nem ninguém. Aceleras o passo, enquanto dizes de ti para ti que não há motivo para teres medo. Deve ser apenas alguém que, como tu, se dirige para casa vindo do trabalho.

Os passos que te seguem tornam-se também eles mais apressados, e aí o pânico apodera-se de ti. O teu coração parece prestes a saltar-te do peito para fora, a tua respiração torna-se mais rápida e ofegante. Dobras a primeira esquina que te aparece e começas a correr, frenética. Deixas de ouvir seja o que for, só pensas em chegar a casa. As ruas começam a parecer-te familiares e dás-te conta de que estás perto de casa. Já só faltam alguns metros para alcançares o calor e a segurança do teu lar.

Finalmente, de chaves na mão, corres para a porta do teu prédio. As tuas mãos tremem, lágrimas de desespero caem pela tua cara abaixo, não consegues dar com o buraco da fechadura. Sentes-te cercada, pensas em tocar às campainhas ou em gritar por socorro, mas consegues abrir a porta. Dentro do prédio, deixas-te ficar encostada à parede durante alguns minutos, às escuras, até retomares o fôlego. Limpas as lágrimas com as costas das mãos e, quando te sentes restabelecida e em segurança, soltas uma gargalhada nervosa, como que para exprimir o teu alívio.

É então, ao acenderes a luz, que o vês à tua frente, a escassos centímetros de ti, à distância de um braço. Sentes algo a quebrar-se dentro de ti, as tuas pernas fraquejam e já não encontras forças para gritar por socorro quando o vês tirar uma navalha da algibeira.

 

Anteriormente publicado em: O Longo Caminho de Regresso, Coolbooks, 2017.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE O AUTOR

António Bizarro

António Bizarro é um escritor e músico nascido em 1978, em São Paulo, Brasil, e vive no Barreiro. Entre 2006 e 2021, editou cinco livros de contos, uma noveleta em inglês e um livro de poesia. Em paralelo, lançou seis álbuns de música eletrónica (industrial/ambiental), tendo a sua música sido usada em podcasts, curtas-metragens, documentários e jogos de vídeo. As suas principais influências são os Alice in Chains, o J.G. Ballard e o David Cronenberg.

https://www.facebook.com/androidapocalypsebooks