Ralações

de Ana Rita Garcia

 

Relações são ralações, é o que eu sempre digo. Raisparta a criança, nunca mais aparece. Bem disse que não precisava de nada, que posso não estar boa da perna, mas estou boa da cabeça! Se não consigo andar, arrasto-me. Ainda me oriento. Tenho couves e tomates na horta, chouriço e carne fumada na arca — não ia passar fome. Mas a minha filha telefonou a avisar que a miúda vem aí para me trazer um docinho. Respondi que não valia a pena, que os diabetes andam altos, e eu não gosto que ela se meta na floresta sozinha… Se já saiu de casa, espero que ao menos traga a capa que lhe ofereci nos anos, ou ainda se constipa. 

Batem-me à porta finalmente. Arrasto-me e abro sem perguntar quem é. Vejo dentes sujos, pontiagudos, e fica noite num apagão. Dou por mim estrangulada no fundo de um saco viscoso e pestilento. Aceito o meu fado. Mania dos antigos de fazerem confiança e desvalorizarem o medo. Podia ter sido mais prudente e certificar-me de quem era antes de abrir. Desta vez, deparei com o meu fim. 

Quando penso que fui desta para melhor e que posso finar-me em paz, aterra-me na cabeça primeiro as sandálias, a capa, e depois o corpo da minha neta. Chora horrorizada pelo susto e pela conclusão. Eu, que já estava consolada, ralo-me e apoquento-me. Embalo-a, como posso, com os nossos corpos cada vez mais apertados naquele fedor. Sinto a pele queimar-se pelo ácido. Fica mais difícil respirar. Vejo a criança fechar os olhos antes de mim. Suspiro. Ponho-lhe o capucho e alinho-lhe a capa, para melhor a compor. Parece um anjinho, podia estar só a dormir. Queria alegrar-me por abandonar a minha perna que já deixara de funcionar faz tempo, mas entristeço-me. Sou um farrapo velho que viveu a vida, mas a miúda ainda era tenra, vivaça, saltitava e cantarolava como os melros e os pardais. E, afinal, acabou-se num bater de asas.

Acaricio-lhe o rosto rosado uma última vez:

— Relações são ralações, menina. São só ralações.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Ana Rita Garcia

Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira-mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. Formou-se em Arquitetura, escondendo a paixão pelas Letras até as histórias começarem a escorrer-lhe pelos dedos. Integrou as antologias In/Sanidade e Dúzia (Editorial Divergência), publicou o conto «Colecionadora» no sexto número da revista literária Palavrar e tem vários contos publicados na página oficial da Fábrica do Terror. Em 2024, foi vencedora do Prémio Ataegina para Conto Original, com Os Acasos Improváveis de Mister Rayleigh.

Gostas de ler? Aqui, encontras os melhores contos de terror! 

Privacy Preference Center