120 Dias
de Patrícia Lameida
«É quase uma bíblia, não é? Este livro abriu-me os olhos!»
A mulher à sua frente fala com uma excitação que lhe move os braços em gestos amplos. Bárbara não compreende por que ali está nem se recorda de como chegou. Não reconhecer o que vê à sua volta só aumenta a sensação de pesadelo.
«Dizem que era um depravado, um sádico. Quer dizer, isso ele até era. Afinal, cunharam o termo com o sobrenome dele.»
A risada seca da sua única companhia não levanta o véu da familiaridade, e o olhar ausente nesta mulher que a ronda diminui a temperatura da sala. Ou cave. Bárbara tem dificuldade em perceber a topografia com a fraca luminosidade.
«Não conheces? Foi um filósofo importante, rompeu com a opressão da época como ninguém foi capaz desde que há registos. Um visionário. E as coisas que ele descreve? Ai, digo-te… Tão, mas tão boas… Confesso que até tenho sonhado com muitas delas.»
Um sorrido estirado pela crueldade olha-a de frente. Bárbara está despida e respirar é difícil, tal é o aperto das cordas que a fundem à cadeira. À falta de pistas visuais, apura o que pode, e a sensação de realidade associa-se a uma bola crescente de medo a enrolar-se nas entranhas.
«Prenderam-no, sabes? Ao Sade. Prenderam-no. Mas ele nunca desistiu de mudar o mundo. Nele ninguém mandava! Nem em mim. Todos os que tentaram tornaram-se pó.»
A última frase é cuspida sobre uma mão que aponta montículos de material incógnito, dispersos pelo espaço em volta. Bárbara não tinha percebido a origem do cheiro pungente que a invadia, mas, olhando para aqueles aglomerados, e percebendo que se movimentam, interpreta o seu redor com uma nova perspetiva.
Insetos. Pequenas unidades voam e rastejam sobre os amontoados de diferentes formas e tamanhos. Bárbara esforça a vista. Percebe uma mão ali, uma cabeça acolá, o pânico traduzindo-se na merda com que suja a cadeira.
«Este cheiro… Borraste-te?» O rosto da desconhecida está sobre si. Há prazer nas suas palavras. «Sabes que o processo é muito mais rápido quando há bosta por perto.»
Bárbara percebeu que chorava. Não sabia desde quando estaria a chorar. De perto, talvez a mulher lhe fosse familiar, não saberia dizer com certeza. Viu-a acariciar cada um dos cadáveres nas proximidades. Não… A acarinhar os insetos em cada cadáver. Bárbara não conseguia fazer mais do que chorar.
«Começam as moscas, é um regalo. Elas cantam muito bem, espero que gostes. E as cócegas que as larvas fazem…»
O sorriso alienado volta-se para Bárbara.
«Vamos passar um bom tempo juntas.»
SOBRE A AUTORA
Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.