14 h 57
de Sandra Henriques
Catarina olhou para o risco no chão de madeira envernizado e parou de empurrar a cómoda — uma coisa volumosa e larga, herança do lado da mãe. Mediu a olho: o estrago no piso era um vinco de pelo menos cinco centímetros. Ia-se notar, e ali não era um bom sítio para pôr um tapete por cima. Preocupar-se-ia com isso depois.
— Podes dar uma ajudinha, Rui?
— Sabes que não posso.
Pois sei.
Catarina encheu o peito de ar, encostou o joelho direito à gaveta do meio, esticou a outra perna para trás para ganhar balanço e pôs uma mão em cada esquina da cómoda. Esvaziou os pulmões de um só sopro e voltou a usar o corpo inteiro para empurrar o móvel — não se mexeu nem um milímetro.
— Desisto.
Olhou à volta do quarto à procura de qualquer coisa que servisse de alavanca, ou que se enfiasse debaixo do móvel para o puxar. Podia ser um cobertor ou um lençol, mas como é que ela levantava a cómoda sozinha? Cruzou os braços e olhou fixamente para Rui, sentado na beira da cama por fazer. O estore meio corrido deixava entrar um fraco fio de luz, o suficiente para iluminar o pó que lhe rodopiava à volta da cabeça e pouco mais. Catarina descruzou os braços e semicerrou os olhos: viu-lhe as rugas, as olheiras, o cabelo desalinhado e colado à testa transpirada. Tresandava a noites mal dormidas, tinha as calças do pijama rotas num joelho e, reparava agora, as unhas das mãos por cortar. Rui levantou-se, e Catarina estremeceu.
— Podes deixar ficar a cómoda onde ela está, Catarina?
— Sabes que não posso.
Pois sei.
Instalou-se um sossego azedo entre os dois: costumava ser cúmplice, uma quietude que aproveitavam para pôr a leitura em dia. Derrotado, Rui arrastou os pés até à porta. Antes de sair, pousou a mão em cima do móvel escuro e olhou por cima do ombro para a mulher.
O percurso do quarto até à casa-de-banho ao fundo do corredor era sempre um caminho tortuoso. Rui caminhava às escuras, tropeçava nos próprios pés e nos tapetes coçados. Ansiava que, um dia, a queda acontecesse e fosse suficientemente forte. Ouviu Catarina ao longe a arrastar o móvel outra vez e fechou os olhos. O barulho dos pés de madeira trabalhada a arrastarem no chão foi mais prolongado.
Estava naquela altura.
Rui tapou os ouvidos.
Um silêncio serpenteou pelo corredor como uma corrente de ar.
Depois, veio a gargalhada solta de Catarina, que amanhã, pela mesma hora, voltaria a destapar o bocado de soalho debaixo do qual ele a tinha enterrado.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Sandra Henriques
Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.