A Encomenda

De Tony Tex

 

Lá fora, a chuva e o vento rugiam numa sinfonia de tempestade. O apartamento de Lídia, contudo, vivia num silêncio só interrompido pelo ruído metálico de uma chave a rodar na fechadura da porta blindada.

Cansada, entrou em casa e, num gesto irritado, atirou o casaco molhado e a bolsa de pele para cima do sofá. Respirou fundo, arrependendo-se da brusquidão do movimento. Apesar de os dois objetos, molhados e caídos fora do sítio, contrastarem com a ordem asséptica dos móveis, deixou-os ali ficar. Só queria soltar-se do peso de mais um dia de trabalho. 

Era tarde, e Lídia tinha fome. Ligou o fogão e pôs água a ferver. Entretanto, colocou legumes na tábua de madeira e pegou numa faca para os cortar. Observou-a por um momento e decidiu trocá-la por outra, exageradamente maior e mais afiada. Começou a cortá-los com uma destreza cirúrgica. A cada corte, a tábua produzia um som seco e ritmado que ecoava pela cozinha. Terminada a tarefa, de olhar distante, observou a água começar a ferver.

Pousou a faca num movimento súbito e olhou em volta. Abriu a porta do congelador e espreitou lá para dentro, fechando-a de seguida com irritação. Voltou ao balcão da cozinha e tamborilou os dedos na tábua, pensativa. Limpou as mãos numa toalha branca e imaculada e dirigiu-se para a sala. 

Pegou no telemóvel e, rapidamente, fez uma encomenda na Food Express. Depois, encheu um copo de vinho tinto e deixou-se cair no sofá. Saboreou o vinho lentamente. Durante os minutos que se seguiram, a casa caiu num silêncio opressivo, só quebrado pelo som da chuva que batia nas janelas com maior fragor.

Quando a campainha tocou, Lídia levantou-se sobressaltada. Foi a tempo de se recompor ao passar de frente por um espelho, ajeitando o cabelo e sorrindo para si própria. Ao abrir a porta, encontrou o estafeta da Food Express, um homem corpulento, encharcado pela chuva. A barba dava-lhe um ar severo, mas ele sorria. Ela, educada, retribuiu o sorriso.

— Lídia? — perguntou ele.

— Sim, sou eu — respondeu ao aceitar o saco que o estafeta lhe estendia.

Assim ficaram, imóveis, a olhar um para o outro. 

— Tem de pagar… — disse ele, num tom mais firme.

Lídia despertou do seu transe.

— Claro, desculpe. 

Encaminhou-se para o sofá à procura da carteira, enquanto acrescentava:

— Pode entrar. Não fique aí à chuva.

O estafeta obedeceu-lhe e, quando Lídia se voltou, estava perto dela, junto ao sofá — demasiado próximo, numa presença incómoda e invasiva. Ainda assim, ela estendeu-lhe o cartão, inserindo o código de forma automática.

— Deve ser difícil trabalhar com esta chuva — comentou, como se quisesse suavizar o momento.

— Faz parte — respondeu ele, com o olhar fixo, observando os movimentos dela. — Se pudesse também ficava por casa… como a Lídia. Mas estamos a enfrentar esta tempestade da mesma maneira… Sozinhos. Está sozinha, não está?

A máquina interrompeu a conversa, confirmando o pagamento. Lídia voltou a colocar o cartão na carteira. Lá fora, um trovão rugiu, feroz. Seguiu-se um baque violento, o som seco de um corpo a cair.

Minutos depois, na cozinha, a água fervia intensamente enquanto Lídia, imperturbável, deitava massa na panela. Ao seu lado, a tábua de madeira tingia-se de vermelho, abaixo de um denso lombo de carne. No chão da cozinha, com as costas ensanguentadas e o rosto ainda molhado pela chuva, jazia o corpo do estafeta. 

Lídia movia-se com precisão, mais cirurgiã do que cozinheira, deitando o pedaço de carne na frigideira e misturando-o com os legumes. Sentiu um cheiro forte e apetitoso a invadir a cozinha. Com um sorriso, fechou os olhos e inspirou profundamente, saboreando aquele aroma que se elevava do fogão. 

Pegou no copo, olhou para o corpo inerte no chão e bebeu um golo do vinho tinto, deleitando-se com o seu sabor complexo. O silêncio voltava a dominar o apartamento. Até a chuva, lá fora, tinha parado. Apenas se ouvia o som contínuo e sibilante da carne a fritar. 


SOBRE O AUTOR

Tony Tex

Tony Tex, nascido em Lisboa, é um autor que transforma as suas inquietações em histórias de terror, fantasia e ficção científica. Considera o terror um reflexo da condição humana e uma forma de explorar o nosso lado sombrio e as verdades que evitamos encarar. A ideia de conseguir transformar em histórias o que se passa nos becos escuros da nossa consciência apaixona-o desde sempre.