A Escalada

de Edgar Ascensão

 

É uma montanha enorme, numa ilha ainda maior, por muito poucos conhecida. É um segredo que se foi sussurrando, passando de boca em boca, para revelar o poder do cume. É com uma caminhada mágica que, a cada etapa, esta confere transformações incríveis ao alpinista que a sobe.

Quem chega à ilha encontra um velho sábio, no sopé, que vai dando indicações a quem se aventura em tal subida.

Há quem diga que se pode agarrar a imortalidade, lá em cima. Puxa do seu cachimbo e, antes de dar uma baforada, continua. — Eu cá não sei, que nunca a subi.

O jovem, de mochila às costas, prefere não entrar em discursos. Em vez disso, mete caminho por entre a mata densa que cobre o trilho.

A encosta começa calma e sem dificuldade, mas a garrafa de água acaba em meia hora e não há qualquer fonte ou riacho pelo caminho. O jovem limpa o suor e acelera o passo. As nuvens vão dando alguma ajuda, e o céu coberto vai afastando as insolações. Tem de chegar aos castanheiros, pelo menos, para garantir alguma proteção.

É debaixo dessa copa que pressente ganhar um admirável reforço físico. Levanta a camisola e descobre um six-pack abdominal. Repara também nos braços, com enormes bíceps. Era a confirmação de que atingira a primeira etapa e de que as histórias eram verdadeiras. Os músculos reforçaram-lhe a vontade de subir.

A cabeça fervilha agora de pensamentos e possibilidades. Será que riquezas materiais fazem parte do prémio? Ouro? Diamantes? Os olhos dele brilham, o coração bate mais depressa, mais forte. A consciência é toldada por ideias de riqueza. 

Já ofega quando se lhe depara um muro rochoso, aparentemente intransponível. Mas a dificuldade é rapidamente esquecida mal coloca a mão no primeiro sulco. Os músculos enrijecem. Vai subir aquela parede.

Sete metros mais acima, já em solo firme, olha para baixo e sorri perante a facilidade com que trepou a parede rochosa. Certamente, não foi o único a consegui-lo, pensou. Sem pitões ou mosquetões à vista, ou rasto de qualquer corda, o mais provável é que o tenham feito apenas com recurso à habilidade motora. Sacode as palmas das mãos aos calções e segue caminho.

Uma leve chuva cai na ilha. Ótima para refrescar e aclarar ideias. O trilho vai minguando, o foco vai acertando. Ao fundo, o jovem vê uma gruta. Terá de passar através dela. 

É ao atravessá-la que percebe que a passagem é uma nova etapa, também ela parte da dádiva. Sente-se a rejuvenescer uns bons dez anos. Fica boquiaberto com o milagre. O coração bombeia como um touro, a euforia é incontrolável.

Findas algumas horas, atinge um planalto em segurança. E de súbito, clareia-lhe a mente, engrandece-lhe a inteligência. A terceira etapa era superior a tudo o que já tinha conseguido. Teria ficado um génio? Em todo o caso, era fácil deduzir que o que o esperava mais à frente seria infinitamente melhor. E que deveria continuar até chegar ao topo da montanha.

Não faltava muito. Rocha a rocha, os pés vão reduzindo os metros até ao destino final.
As pedras rodeiam-no caminho acima, numa última inclinação. Há uma ou outra que se solta e que rebola por ali abaixo. Ele não desiste. Curioso, ofegante e excitado, pergunta-se quando sentirá a tal sensação de imortalidade.

Chega finalmente ao topo. Ao pisar a última rocha, fecha os olhos e respira fundo. Espera que algo lhe percorra o corpo — uma última sensação, uma última dádiva milagrosa. Equilibra-se por entre as rochas redondas cambaleantes e aproveita para ver a vista, sublime em toda a ilha. Mas eis que um formigueiro se apodera da sua mão. A comichão sobe pelo braço, enquanto ele olha horrorizado para as pernas, para perceber que se converteram em pedra. A sensação percorre-lhe também o peito, o outro braço, já não consegue fugir. As pernas quebram-se com o desequilíbrio. Olha em volta, ainda. Percebe quantas rochas iguais ali se empilham. Antes de se tornar todo ele pedra.

E lá em baixo, no sopé, agarrado ao seu cachimbo, o velho murmura de olhos fechados:
Assim a montanha se eleva.

SOBRE O AUTOR

Edgar Ascensão

Desde sempre ligado às artes visuais, foi pintor, designer e videomaker. Argumentista de umas quantas histórias BD publicadas em diversas fanzines, foi também um dos membros fundadores da Take Cinema Magazine. Durante muito tempo, alimentou o seu blog de cinema Brain-Mixer, onde extravasava toda a sua mente cinéfila. Foi aqui que nasceram os Posters Caseiros, cartazes alternativos de filmes.
Ainda gosta de escrever casualmente, entre o terror e sci-fi. Mas vê o futuro dividido, entalado entre as palavras e as imagens, os contos ou os posters.