A Espera

de Sandra Henriques

 

O sol quente do meio-dia parecia avivar-lhe o montinho de sardas escuras que se encavalitavam no nariz franzido. Uma leve brisa com cheiro a flores e doces fritos (as duas coisas «mais favoritas dela em todo o mundo») envolvia a pequena vila aninhada entre montes verdes e riachos. Com os caracóis negros a saltitar e a língua de fora, a espreitar pelo canto esquerdo da boca, Carolina corria o mais rápido que conseguia desde a esquina da sua casa até à praça no fim da rua.

Quase que te apanhava!, pensou ela, enquanto o Necas lhe escapava pelas mãos suadas mais uma vez, ao mesmo tempo que os joelhos cicatrizados lhe amparavam outra queda nas pedras lisas do pavimento desnivelado. O gato amarelo de olhos verdes parecia ficar a desafiá-la, deitado à sombra dos carvalhos pesados que abrigavam os velhos do costume a jogar à sueca.

Aproximava-se depois dele devagarinho, com palavras meigas e a doçura de quem tem uma latinha de patê de salmão, só para aquele bicho-de-mato que, como diria a mãe, «era de casa, mas da rua». Camas fofas e humanos barulhentos não eram com ele, mas nunca recusaria comida que não tivesse de caçar.

De cócoras ao lado do gato, afagava-lhe o pescoço com uma mão enquanto, com a outra, tirava as pequenas pedras e sacudia os restos de terra que se tinham colado à nova colecção de arranhões. A pele, vermelha e quase em carne viva, ardia, e Carolina soprava as feridas ao de leve. Não tardaria nada e a Dona Amélia do café viria acudi-la com o seu lanche favorito: leite com chocolate e pão com manteiga e açúcar por cima.

De mãos nas ancas e um ligeiro abanar de cabeça, Amélia assistia àquela cena diária, encostada à porta do seu estabelecimento junto à praça. Que hei-de fazer contigo, Carolina, a não ser deixar-te correr atrás do gato?, pensava a mulher com um sorriso meigo e lágrimas nos olhos, que limpava de imediato com o lenço guardado no avental.

— Carolina! Anda lanchar! 

Ao ouvir o chamamento, a miúda levantava-se com a rapidez de quem tem molas no rabo e entrava esbaforida café adentro. Amélia prendia-lhe os caracóis num rabo-de-cavalo, passava-lhe um pano molhado pelos joelhos e pela cara, sacudia-lhe o pó da saia rodada e punha-lhe a mesa. Esfomeada e com vontade de correr atrás do Necas outra vez, Carolina quase engolia a fatia grossa sem mastigar, empurrada esófago abaixo com enormes goles de leite frio. Invariavelmente, engasgava-se com a pressa.

— Devagar, Carolina!

A miúda ria-se até espirrar leite pelo nariz.

— A minha mãe hoje veio, Amélia?

— Hoje, não. Talvez amanhã. — As lágrimas teimavam em assomar-se novamente aos olhos da mulher que afastava a memória triste com uma mudança de assunto. — Acho que o Necas está à tua espera!

Saciado, e depois de terminar o seu ritual de limpeza, o gato esticava o dorso como quem estala os ossos, pronto para a sua sesta diária no colo de Carolina. Ainda com o queixo besuntado de manteiga, a miúda voltava a sair porta fora, envolta numa coroa de caracóis negros saltitantes que descia da cabeça até aos ombros.

— Uma tristeza, não é Amélia? — desabafou Josefa enquanto colocava a louça suja em cima do balcão.

— Pois é. Mas é para isso que cá estamos. Se a tivessem acudido…

— Pois é, pois é. Uma tristeza, mesmo. Mas também sozinha a miúda não está. Desde que o pai não venha antes…

— Que venha! — disse Amélia irritada, batendo no balcão com as mãos abertas e sentindo a dor do impacto pelos braços acima. — Daqui, não passa!

Josefina pulou com o susto e afastou-se até à janela. De mãos no coração, deixou-se ficar com a testa encostada ao vidro a olhar para o céu: sempre limpo, sempre azul. Tinha dado pelos dois, miúda e gato, embrulhados como uma bola deixada no tronco da árvore mais retorcida da praça. Dormitavam, com os pequenos peitos a subir e a descer devagarinho, ao ritmo do sono profundo. Não os tinha reconhecido, mas Amélia sim, de imediato. 

É a filha da Ana… Está sozinha?

Tinham esperado pela mãe da pequena, achando que viria no seu encalço, dizendo sempre, para conforto da criança, que devia estar quase, que esperasse mais um bocadinho, que estava mesmo, mesmo quase. Até ao dia em que um dos velhos que joga à sueca chegara e, ao reconhecer Carolina, dissera a Amélia e aos outros para desistirem da espera. Pelo menos, por agora. Ana não viria já. Mantinha-se calada e em repouso, afastada de todos, mergulhada num sofrimento surdo e escuro. Não conseguiria vir já. O pai, esse, antecipara a morte enterrando uma faca no próprio pescoço. Tivera um enterro burocrático, muito mais do que merecia. Se fosse eu a mandar, dissera-lhes o velho, nem bênção do padre!

A dona do café observava, absorta, Necas e Carolina que dormiam a sesta, os dois enroscados ao sol em cima da mesma manta aos quadrados com que a mãe os cobria todos os dias. Aninhados no sofá velho que Ana guardava no sótão, tinham-se escondido a pedido dela e adormeceram, à medida que o Sol se punha e os gritos abafados do andar de baixo aumentavam de tom. Embalados por sonhos que cheiravam a flores e doces fritos, nenhum deles tinha dado pelo cheiro a fumo. Quando acordaram, já o fogo os tinha consumido. 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Sandra Henriques

Sandra Henriques estreou-se na ficção especulativa em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada». Desde aí, publicou contos em várias antologias de terror nacionais e internacionais e contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.